Um provérbio africano afirma que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. A temática também é bastante endossada pela filósofa alemã Hanna Arendt, que defende a participação coletiva na formação de crianças e adolescentes. Em Goiânia, há 107 voluntários que seguem à risca essa máxima: eles dedicam parte de seu tempo livre para proteger menores de idade em situações de vulnerabilidade. São os chamados agentes de proteção da Infância e Juventude, ligados ao Juizado de mesmo nome. Desde o início deste ano, as equipes da capital conseguiram encaminhar quase 200 jovens de volta para seus lares em 23 autuações em bares e eventos.
Para quem deseja integrar a equipe, agora está aberto edital para provimento de vagas. As inscrições serão entre os dias 21 de março e 2 de maio. Interessadas e interessados devem ter, pelo menos, 21 anos de idade, possuir diploma de ensino médio e não ter antecedentes criminais. O processo seletivo prevê quatro etapas: prova objetiva e discursiva, teste psicotécnico, entrevista pedagógica e, por fim, curso de formação e estágio prático. Titular da unidade judiciária, a juíza Maria Socorro de Sousa Afonso Silva, explica que quem exerce a função “são pessoas idôneas e merecedoras de confiança, que uma vez credenciados pelo juiz, voluntariamente assumem a tarefa de resguardar os direitos da criança e adolescente, assegurando-lhes a proteção integral”.
Na prática, o trabalho compreende plantões semanais em linhas de atuação divididas: fiscalização em bares, eventos – nos quais podem haver presença irregular e consumo de drogas ou bebidas alcoólicas por crianças e adolescentes -; postos de serviço de orientação em rodoviárias e aeroportos; e palestras e ações preventivas em escolas. Apesar de ser um serviço de natureza voluntária e, portanto, sem remuneração, é preciso “ter comprometimento e responsabilidade”, conforme afirma o diretor da Divisão de Agentes de Proteção de Goiânia, Cleyton Rocha de Almeida. O caráter voluntariado, inclusive, está no âmago da atividade, para ele.
“Acredito que a função aproxima a sociedade do Poder Judiciário e também da rede de proteção da infância, sendo uma longa manus do juiz (expressão em latim que designa o executor de ordens). Vejo que o servidor tem uma atuação institucional administrativa, enquanto o voluntário atua em um viés social”, conta o diretor. Segundo ele, há agentes voluntários entre 26 e 76 anos, “de várias religiões e vivências e isso contribui para compartilhar mais informações, mais adaptações, mais criações”.
Vivências
Em 1996, o servidor municipal Henrique Vadson Meireles viu um agente de proteção identificado por um colete, no Aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia, na época com a identificação S.O.S Crianças. Achou interessante o trabalho, puxou assunto e resolveu se inscrever para fazer o mesmo. Sua esposa, Lucileide, decidiu acompanhá-lo. Desde então, há mais de duas décadas, o casal dedica parte do tempo livre para as atividades semanalmente. Na memória, somam histórias de desafios, percalços e experiências.
Henrique narra, com minúcias, um momento acontecido há mais de 15 anos. “Recebemos a denúncia de uma casa abandonada, com adolescentes entre 11 e 14 anos, em situação vulnerável, consumindo drogas. Os jovens estavam em estado crítico. Mesmo tentando ajudar, recebi uma cuspida no rosto de um deles. Na hora, entendi a fúria e reação do garoto”, conta. “É um trabalho difícil, mas o aprendizado e a sensação de ajudar proporcionam tranquilidade ao fim do dia”.
Advogado há 33 anos, Alan Batista Alves completa uma década como agente de proteção neste ano. Para ele, a infância e a juventude demandam zelo da sociedade, bem como uma maior participação da família. “Acredito que se os pais fossem mais próximos dos filhos, muitas dos problemas seriam evitados”, conta. Pai de um adolescente de 16 anos – que já manifesta interesse em ser agente voluntário quando crescer – Alan conta sobre o cotidiano das autuações. “O agente realiza um trabalho extremamente necessário, que muitas vezes salva a vida de jovens, que estão consumindo drogas ilícitas ou estão em situações perigosas e vulneráveis”.
Para realizar o trabalho, ele é enfático, ao recomendar comprometimento e responsabilidade às candidatas e candidatos ao novo processo seletivo para agentes de proteção. “É preciso coragem, determinação, dedicação. Muitas das vezes, abdicamos, até mesmo, nossos compromissos familiar para atuar e ajudar na causa”, sentencia o advogado.
Há oito anos como agente de proteção, o Matheus Rodrigues Carvalho, é um voluntário nato – já atuou com populações carentes, em presídios e escolas públicas. Ele, que trabalha regularmente no setor administrativo de um hospital, sempre encontra tempo para ajudar ao próximo. Em sua experiência, ele assinala que os atendimentos que costuma fazer são histórias que se repetem, mesmo em cenários distintos: “são pessoas vindas de lares desestruturados, com baixa escolaridade, infância pobre, sofreram abusos e discriminação por conta da cor, sem oportunidades de emprego e têm perspectivas de vida desesperançosa”, enumera.
Além da vocação para ajudar, Matheus recomenda aos interessados no cargo ter um “total desprendimento de vaidade e entender que é um trabalho que traz um desconforto emocional, pois lida com situações de violência, e histórias, muitas vezes, chocantes”. Entre os inúmeros casos que ele já atendeu, ele cita um dos mais emblemáticos: um abandono de dois irmãos.
“Estava no posto de plantão na rodoviária de Goiânia, quando os seguranças trouxeram uma bebê de um ano e oito meses, que estava catando comida do lixo. Acionamos o Conselho Tutelar, por ser uma situação de suposto abandono. Enquanto os conselheiros não chegavam, pedi ajuda na lanchonete e fui orientado a comprar um suco de laranja e um pão de queijo. Na hora em que entreguei os alimentos, ela comeu tudo. Foi uma vida que dependeu inteiramente de mim, me coloquei como pai naquele momento”, conta.
Matheus ainda narra que, momentos depois, outra criança, de quatro anos, que deveria ser o irmão da menina, também foi trazido ao local pelos mesmos seguranças. A equipe da rodoviária conseguiu acessar as imagens do circuito interno e identificou a suposta mãe. Horas depois, a mulher foi localizada na região da Rua 44 e manifestou desinteresse na guarda, por falta de condições financeiras. “Foi, praticamente, uma vida toda que passou durante as horas de aguardo pelo Conselho Tutelar”, relata o voluntário sobre o caso que aconteceu há seis anos.
Mais do que um simples voluntariado, Matheus acredita que a função está ligada a um sacerdócio e traça um perfil desejado para quem deseja se inscrever: “ser honesto e com caráter, pois além de ser um trabalho sem remuneração, é uma 'procuração' que temos para agir em nome do Juízo da Infância e Juventude. É uma honra servir, mas a responsabilidade em representar o Poder Judiciário em situações específicas, deve estar totalmente dentro de ações legais sem qualquer interesse pessoal envolvido nas decisões. É preciso agir como o magistrado agiria e estar alinhado com o pensamento e atitude do representante da Justiça”. (Texto: Lilian Cury / Fotos: divulgação - Centro de Comunicação Social do TJGO)