“Eu me olho no espelho e só vejo a violência. Eu refiz a minha vida e as pessoas dizem que eu sou uma vencedora, mas eu não me sinto assim. Eu não consigo. Sinto um vazio muito grande, ele não tinha o direito de roubar a vida que eu tinha, só por eu ser mulher e não ter forças”. A afirmação é de Vânia*, 36 anos, moradora do Estado de Goiás, que há seis anos teve o nariz arrancado por uma mordida do ex-marido, que tentava atingir seu pescoço com uma faca.
Para amenizar a dor de mulheres como Vânia, o TJGO foi o primeiro tribunal do País a assinar um termo de cooperação para a realização de cirurgias plásticas reparadoras em mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica. Saber da parceria, firmada com a Fundação Instituto Para o Desenvolvimento do Ensino e Ação Humanitária (IDEAH) da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), fez Vânia chorar muito ao relembrar do dia 5 de setembro de 2016, quando o então marido a atacou com uma faca, às 3 horas da tarde de um domingo.
Para o chefe do Poder Judiciário goiano, desembargador Carlos França (na foto abaixo), o acordo com essa respeitável Fundação é mais uma tentativa do Poder Judiciário de colaborar na busca de devolução da dignidade às mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica. “Mais que reparar a estética dessas pessoas, esse procedimento ajudará devolver alguma dignidade a essas vítimas, que não precisam carregar, também no corpo, as marcas da violência doméstica”, afirmou o desembargador, que fez questão de, no 3º Encontro do Conselho de Presidentes de Tribunais do Brasil (Consepre), ocorrido entre os dias 24 e 26 de agosto último, na sede do TJGO, trazer representantes da Fundação para que eles apresentassem o programa para presidentes de tribunais de toda a Federação.
Como Vânia, mulheres, crianças e adolescentes sequelados pela violência doméstica e familiar terão uma chance de reconstruir sua imagem pela parceira firmada entre o TJGO e a Fundação de Ações Humanitárias da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Pelo acordo firmado, o TJGO se encarregará de orientar os magistrados e as magistradas para fazerem o levantamento das vítimas do crime e, por meio da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, promoverá o contato com essas vítimas para informá-las sobre a possibilidade de serem avaliadas por médicos, que definirão sobre a necessidade ou não de realização do procedimento reparatório. Caberá também ao TJGO fazer gestão junto às delegacias de polícia especializadas, Ministério Público e Defensoria Pública buscando colaboração no sentido de localizar essas vítimas.
Já à Fundação Instituto Para o Desenvolvimento do Ensino e Ação Humanitária competirá o encaminhamento dessas vítimas para o Serviço de Cirurgia Plástica da Rede Privada e serviços públicos credenciados da SBCP para avaliação das vítimas e indicação do tratamento mais adequado, quando for o caso. Para Luciano Ornelas Chaves (na foto abaixo), presidente da Fundação, a pandemia elevou muito o número de mulheres agredidas, uma vez que, no confinamento, elas precisaram ficar no mesmo espaço que seus agressores e esse foi uma das razões para elaboração do projeto.
Segundo ele, a Fundação Instituto Para o Desenvolvimento do Ensino e Ação Humanitária é a única fundação entre as especialidades médicas Brasileiras que tem como mantenedora a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. No total, são 7,5 mil cirurgiões plásticos no País. “Todos esses profissionais são solidários e sensíveis à causa e à sua responsabilidade social. Sabemos que essas pacientes tornam refugiadas e não procuram assistência médica para tratamento dessas sequelas porque existe um contexto de constrangimento, pois elas precisam relatar suas histórias tristes e revelar porque elas ou seus filhos estão sequelados”, ressaltou.
Ainda de acordo com Luciano Chaves, com o auxílio do TJGO será mais fácil encaminhar essas mulheres para os procedimentos necessários. Em Goiás, são três unidades credenciadas: Santa Casa, Hospital Geral e Hospital das Clínicas. Um mutirão para o atendimento dessas vítimas será realizado de 7 a 12 de novembro 2022, semana que antecede o Congresso Brasileiro de Cirurgia Plástica, que será realizado em Goiânia.
Para a desembargadora Sandra Regina Teodoro Reis, que chefia a Coordenadoria da Mulher do TJGO, a cirurgia plástica tem o poder de devolver às vítimas de violência doméstica a autoestima necessária para que elas possam superar a violência. “Compreendemos o quão difícil é para as mulheres vítimas de violência carregarem marcas e cicatrizes que as fazem lembrar da agressão. As mulheres com lesão ou sequelas sofrem com consequências para além da saúde física, envolve também danos para a saúde mental. Portanto, a cirurgia plástica pode ajudá-las na superação da violência no corpo e na alma”, disse.
Esperança
De fato, para Vânia*, a parceria é um alento que pode ajudá-la a esquecer a fúria do ex-marido e as “profundas cicatrizes” físicas e emocionais que restaram do relacionamento, fora o filho, hoje com 8 anos, que não convive mais com o pai. No dia do “acidente”, como ela se refere à agressão, Vânia conseguiu segurar a faca que ele empunhava e impedi-lo de cravá-la em seu pescoço, até que os seus gritos alertaram o irmão dele, que tomou a arma de sua mão. Ele, então, mordeu seu nariz arrancando metade dele. Para fugir daquele ataque, Vânia, que estava na laje da casa onde morava, pulou e quebrou a perna em três lugares, tendo, inclusive, uma fratura exposta.
“Eu aguentei 3 meses e 5 dias de internação e 53 cirurgias para tentar salvar minha perna, que corria risco de ser amputada. Por fim, tiraram minha panturrilha e implantaram no meu tornozelo. A perna foi salva, mas é um milagre que eu esteja andando, pois perdi todo o movimento dela. Foi tudo terrível. Eu entrava dia sim e dia não na sala de cirurgia. Aguentei tudo isso para poder voltar para o meu filho”, contou emocionada, ao relembrar a grave violência que sofreu. “Apesar de ter sofrido outras agressões, tinha uma vida estruturada. Tinha feito administração, estava num bom emprego, tinha meu filho. Tenho muita mágoa e medo. Ele não tinha esse direito”, afirmou. (Texto: Aline Leonardo / Arte: Wendel Reis / Fotos: Acaray Martins - Centro de Comunicação Social do TJGO)
Vânia é nome fictício.