Quando era pequena e vinha visitar o Museu das Bandeiras com os colegas da escola, a menina Elenízia da Mata (na foto abaixo) ainda não processava direito as informações mas se entristecia ao perceber que os colegas apontavam mesas, móveis e objetos de decoração e reconheciam neles pertences dos avós, pais e antepassados. Os objetos de sua história, contudo, remetiam à humilhação, tortura e vergonha. Hoje, vereadora e com letramento racial, Elenízia participou, na manhã desta quarta-feira (17), no quintal desse mesmo Museu das Bandeiras, de uma Roda Antirracista.
O programa, coordenado pela juíza Érika Gomes Barbosa Cavalcante, integra a programação do Justiça Itinerante, que até quinta-feira (18) atende a população da cidade de Goiás e cerca de 750 de 30 assentamentos próximos. A Roda, que teve a participação da juíza auxiliar da Presidência do TJGO, Marina Buchdid; dos juízes Gabriel Lisboa, Bárbara Fernandes e Leonardo Santos, reuniu populares, lideranças locais, secretários, vereadores, promotores e representantes indígenas para discutir o racismo e suas consequências na vida das pessoas pretas, além de preconceitos com os povos originários.
“Esse museu é uma espécie de símbolo de como nós nos organizamos no Brasil, em Goiás e em Vila Boa. Esse é o Museu dos Bandeirantes, de quem chegou e cravou sua bandeira aqui no coração de Goiás e definiu o rumo da estruturação desse lugar, da história e os caminhos para esse Estado. Essa é uma casa de câmara e cadeia. Na parte de cima, a casa que produzia prazeres e, embaixo, o espaço onde as pessoas seriam aprisionadas. Metaforicamente colocadas. Embaixo, quem tem menor valor e direito à memória e à história. Em cima, aquele cuja narrativa poderá ser exaltada”, reforçou.
De terno e gravata, o promotor de justiça de Itaberaí, Paulo Henrique Otoni, também refletiu sobre a dificuldade das pessoas negras de conhecerem sua história e seu passado. “Quando falamos com uma pessoa branca, ela sabe dizer suas origens até sua quarta geração. Nós não conseguimos chegar à terceira, porque isso nos foi roubado e esse fato não é reconhecido pelas pessoas em posição de poder e que poderiam fazer esse resgate e nos oferecer um pouco mais de dignidade”, afirmou o promotor, que, apesar de todas suas qualificações, afirmou que, mesmo num ambiente informal como a roda, ainda vai de terno e gravata para se fazer respeitar e evitar o racismo.
A psicóloga Maria Gualda, por sua vez, sabe de onde vem, mas demorou a aceitar suas origens negras. Negra de pele clara, ela veio de um assentamento resultado de uma reforma agrária e contou que a demora desse reconhecimento trouxe muitos problemas psíquicos. “Tem pouco tempo que eu tomei consciência da minha origem negra. Isso me fez atentar para o fato de que nossas crianças são colocadas num lugar de invisibilidade porque isso marcou a minha vida, minha trajetória. Mas, esse reconhecimento, além de necessário, foi libertador. Eu sou fruto desse universo e essas pautas discutidas na Roda Antirracista são muito necessárias”, compartilhou ela, que recitou uma poesia sobre o tema para os presentes.
Representante do Comitê de Igualdade Racial, o juiz Leonardo Souza Santos contou que, ainda hoje, mesmo com um cargo importante como juiz, ainda ouve perguntas como “a que família você pertence', como se o fato de ter alcançado esse status só pudesse ser resultado de uma criação por uma família abastada. “Sou filho da Marise, que trabalhou num banco, e do Gilmar, que é da prefeitura”, ele costuma responder. Leonardo também chamou a atenção para o adoecimento psíquico em pessoas negras e também para o alcoolismo, que costuma acometê-las e que é resultado desse processo escravocrata e de racialização, principalmente nas comunidades que são originárias dessa diáspora de famílias negras.
Digestão
A coordenadora do programa, juíza Erika Cavalcante agradeceu as participações durante a Roda e afirmou que as reflexões feitas durante o projeto mexem com a estrutura da sociedade. “Tudo que é dito na Roda, dura mais tempo, porque passa por um processo de digestão e se manifesta uma semana, um mês ou um ano depois”, afirmou ela antes do encerramento da Roda, que foi marcado pelo recital do poema Não Vou Mais Lavar os Pratos, lida por todos os participantes.
Presenças
Compareceram também ao evento o secretário de Igualdade Étnico Racial da cidade de Goiás, Lázaro Ribeiro; os procuradores do trabalho, Tiago Ranieri e Débora Tito; os servidores do TJGO, Ubiratan Barros, Marília Braga, Kelvin Mota, Cícero Melo e Arianne Vidal; Wilton Marques Júnior; Pedro Henrique Souza, os indigenista Francisco Otávio Oliveira e Haroldo Resende; as estudantes Beatriz Rocha Alves e Luiza Porto Alves; os professores Kellen Nacimento Ribeiro, Vitor Costa Silva e Gláucia Fernandes; o assessor Tobias Barros; a advogada Alessandra de Jesus; a assistente social Sara Ribeiro; os técnicos de Informática Huan Pereira e Guilherme Melo; o caminhoneiro Alexandre Soares; Ingrid Amaral e Edvaldo Velasco, da Câmara Municipal; a quilombola Alta Santana; as assessoras Stéphany Lima e Camila Gibrão; Maria do Rosário Gomes e os servidores da UFG, José Humberto dos Anjos e Katoline de Sousa. (Texto e fotos: Aline Leonardo - Centro de Comunicação Social do TJGO).