Uma nova geração de juízes do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás vem constantemente mostrando que é possível fazer bem mais do que a sociedade espera de um magistrado. Hoje, eles saem de seus gabinetes, tiram suas togas e se aproximam da comunidade, se comportando cada vez mais como agentes públicos. Um dos representantes dessa nova safra é Peter Lemke Schrader, um ciclista profissional que abandonou as corridas para se tornar juiz e que, nessa segunda-feira (6), após nove anos na magistratura, se aposentou para tratamento de um câncer, deixando um legado de comprometimento e sensibilidade.
Aprovado no concurso de 2011, o juiz Peter Lenke esteve à frente da Diretoria do Foro da comarca de São Luiz de Montes Belos, onde se destacou por trabalhos como o realizado no presídio regional, que fica na cidade e atende também os municípios de Maiporá e Ivolândia. Em parceria com a unidade prisional, Ordem dos Advogados local e Conselho da Comunidade, entre outros, foram arrecadados mais de R$ 170 mil para ampliação do local, que se tornou referência na região pelo trabalho humanizado com os 145 detentos atendidos nos regimes fechado e aberto.
A unidade prisional ganhou um galpão de trabalhos manuais e uma segunda sala de aula, assim como um laboratório de informática e um espaço para instalação da fábrica de blocos e telhas de cimento. A instalação de transformador só para a unidade, resolveu os problemas de energia elétrica e foi feita ainda reforma geral do prédio com a construção de um anexo separado para a ala feminina, o que possibilitou o banho de sol das reeducandas.
Os banheiros receberam atenção especial, com a inclusão de box em todos eles, para garantir a dignidade de um banho privativo. Toda a estrutura das celas foi reforçada e ampliado para 21 o número de camas leito. Além disso, o piso da cadeia foi substituído de cimento grosso para granitina. O espaço ganhou, ainda, uma brinquedoteca e um playground, entre outros projetos e parcerias que foram sendo implementados dia após dia, a exemplo da construção de uma lavanderia, com quatro máquinas de lavar.
Outro benefício melhorou a forma como é servida a comida dos reeducandos, que passou a ser em cubas, com os alimentos quentinhos. Até então, eles recebiam as refeições principais em marmitas de alumínio que, muitas vezes, chegavam até o presídio já frias. Cada preso ganhou ainda um kit de uniforme, composto de duas camisetas, duas calças e uma bermuda. As obras de ampliação e reforma do Presídio Regional de São Luís de Montes Belos foram feitas em um ano e 26 dias e com força de trabalho oferecida pelos próprios reeducandos que, além de uma remuneração de 700 reais por mês, receberam, a cada três dias trabalhados, um dia a menos de pena.
Casamento
Além de uma melhor qualidade de vida para os detentos, a reforma do presídio trouxe também uma modificação significativa na vida do magistrado. Foi por causa do zelo com os presos que ele atraiu a atenção da advogada Sueli Barbosa Gonçalves Scharder, que conheceu quando assumiu o posto na comarca e com quem completará dois anos de casado em agosto deste ano. “Vi pessoalmente a mudança na vida dos detentos. Alguns deles problemáticos e que agora trabalham dentro do presídio com a perspectiva de ir para a faculdade quando cumprirem suas penas”, contou ela. “Temos reeducandos que agora oram por nós e nos mandam mensagens de oração e conforto. Recebo todos os dias”.
Decisões marcantes
A humanidade do magistrado pôde ser observada também em decisões marcantes, como a que, em março de 2017, permitiu a visita íntima homoafetiva no presídio, fazendo valer a as disposições normativas que regulamentam o direito, principalmente a Resolução n°4/2011, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
A decisão do juiz foi tomada após a abertura de procedimento administrativo sobre a notícia de suposta violação de direitos humanos em razão da negativa de visita íntima do companheiro de um reeducando recolhido na unidade prisional da comarca. O preso em questão já havia saído do presídio, mas ele, ainda assim, determinou que esse fosse o parâmetro a ser seguido em situações semelhantes que pudessem ocorrer no futuro.
Na decisão, muito repercutida na mídia, Peter Lemke observou que os estabelecimentos penais têm autorizado a visita íntima aos presos, não como uma regalia, mas sim como um verdadeiro direito, que contribui para a ressocialização e traz ainda benefícios ao convívio interno dos detentos. “É importante que as instituições públicas estejam aptas a se adequarem às mudanças da sociedade que, assim como o direito, não é estanque e se encontra em constante processo evolutivo”, afirmou ele na ocasião.
Numa prova evidente de evolução da jurisprudência defendida por ele, o magistrado, ainda em 2017, determinou, em outra decisão de repercussão nacional, que o pai de uma estudante de medicina pagasse R$ 100 mil a ela por abandono afetivo.
Infância
Peter Lenke também abraçou a causa contra o abuso sexual infantil na cidade em parceria com os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e Adolescente e Conselho Tutelar e participou ativamente de todos os eventos, incluindo as caminhadas do dia 18 de maio – realizadas em todo o País para chamar atenção para o assunto – mesmo fazendo quimioterapia. “Por estas razões, mesmo em tão pouco tempo, ele marcou a vida de muitas pessoas”, constatou Sueli.
Quando descobriu o câncer, em 2017, Peter Lemke tinha acabado de se tornar campeão brasileiro de ciclismo, em prova realizada em João Pessoa. Apaixonado por esportes, deixou de lado a carreira como ciclista profissional para ser juiz, mas voltou a pedalar na primeira oportunidade que teve.
Como ganhava todas as corridas que participava, ele foi submetido a um antidoping que, apesar de ter resultado negativo, acusou uma alteração hormonal, e que, com o complemento de outros exames, comprovou o câncer.
Com toda a dedicação do magistrado, que marcou a comarca de São Luís de Montes Belos com seus atos humanitários e comprometidos, e o próprio Direito, com decisões que inspiraram juízes Brasil afora, não é difícil afirmar que, na magistratura, Peter Lemke Scharder também foi um campeão. (Texto: Aline Leonardo – Centro de Comunicação Social do TJGO – Fotos: arquivo pessoal)