O juiz da comarca de Crixás, Alex Alves Lessa, suspendeu o Decreto Municipal nº 142/2020, que flexibilizava a abertura de comércio e serviços locais, após medidas de isolamento social devido à pandemia do novo coronavírus. Na decisão, o magistrado considerou que não houve avaliação epidemiológica das ameaças e vulnerabilidades do município. Na cidade, não há nenhuma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), nem respiradores mecânicos e profissionais de saúde treinados para atender possíveis casos de Covid-19.

Além da suspensão, o Município não poderá editar nova normativa com o mesmo assunto, sem seguir as devidas recomendações técnicas da autoridade sanitária municipal devidamente amparadas em “evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde”. O juiz ainda determinou a divulgação, “de forma ampla e imediata, inclusive por meio de carro de som”, das medidas de higiene e cuidados para evitar a propagação da doença. Em caso de desobediência, a Prefeitura está sujeita a multa diária de R$ 5 mil.

Alex Alves Lessa ponderou que o afrouxamento indiscriminado das medidas de isolamento pode acarretar no colapso do sistema de saúde. Ele chamou a atenção para a gravidade da pandemia no Brasil, que pode se tornar novo epicentro mundial do novo coronavírus, com disseminação em larga escala e casos subnotificados, uma vez que não há testagem em massa de possíveis contaminados.

“Na última semana de abril, pelo Boletim 14 do Ministério da Saúde, foram feitos apenas 339 mil testes, para Covid-19, com mais de 100 mil casos, o que significa dizer que o Brasil faz aproximadamente três testes para cada caso positivo. Comparado a outros países, a exemplo da Alemanha, e de acordo com informações técnicas da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil, antes de flexibilizar o isolamento, deveria estar fazendo, pelo menos, 300 mil testes por dia, para acompanhar a realidade da doença”, destacou o juiz.

O magistrado citou, novamente, a OMS, para justificar que, antes de diminuir o isolamento social, é preciso levar em conta os seguintes fatores: controle da transmissão; oferta suficiente de serviços médicos e de saúde pública; minimização dos riscos de um novo surto; medidas preventivas em locais essenciais, como escolas, locais de trabalho e outros;  controle dos riscos de importação do vírus; e participação ativa das comunidades.

“No entanto, o que se vê no Brasil é uma realidade muito diferente dos fatores apontados acima, tendo em vista que o avanço da doença está em ascensão. Não há testes em massa e em muitas regiões o sistema de saúde já começa a entrar em colapso. Aliás, especialistas apontam erros que põem o Brasil na rota do ‘lockdown’: adesão irregular ao isolamento social; falta de restrição de circulação durante feriados; comportamento do presidente da república que minimiza riscos e confunde população; dissonância entre Governo Federal, governadores e prefeitos que confunde e dificulta diretriz única (...)”.

Números mascarados

Na decisão, Alex Alves Lessa se mostrou preocupado com a subnotificação de doentes com covid-19, segundo dados de pesquisas brasileiras e internacionais. Pela estimativa do Imperial College, de Londres, o Brasil perde 90% dos casos, isto é, a cada 100 casos da doença, o Brasil detecta apenas 10. “Isso é grave, pois, além da retomada do crescimento da doença, decorrente dos erros como a flexibilização sem critérios, os números do Brasil podem ser 10 vezes maiores do que os dados oficiais, tanto para casos de infectados quanto para mortes”.

O juiz destacou, também, dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que monitora os casos reportados de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) hospitalizados, estimando que há, hoje, nos hospitais brasileiros, 10 vezes mais internações do que o normal por SRAG, fator que indica o alto índice de subnotificação. “Os próprios dados oficiais do Ministério da Saúde, conforme Boletim 14, indicam que o Brasil tem, pelo menos, quatro vezes a mais o número de internações por SRAG do que esperado para o período, sem computar os casos de Covid-19. Em outras palavras, o próprio MS reconhece que há muitas pessoas internadas que não estão sendo testadas e que evidenciam que o quadro da doença é muito mais grave do que o divulgado . Assim, se considerarmos o que o próprio Ministério da Saúde reconhece, os números reais de Covid-19 seriam mais de 500 mil casos”.

Dessa forma, o juiz frisou que como os dados oficiais não são seguros pela falta de testes, “é inevitável ter que se recorrer à ciência para se tentar traçar estratégias para a adoção de políticas públicas corretas e seguras”.

Isolamento Social

Para ressaltar a importância do isolamento social a fim de combater o avanço da pandemia, Alex Alves Lessa criticou quem defende que o ideal é criar imunidade de rebanho, como se 70% da população já fosse contrair, de qualquer forma, a doença. “Embora os estudos apontem para a imunidade (após contrair a Covid-19) , não há ainda certeza científica, tendo em vista que algumas pessoas infectadas voltaram a pegar o vírus. (...) A denominada imunidade de rebanho não necessariamente é atingida com 70% dos brasileiros, pois os modelos de rebanho indicam que os índices de infecção podem superar os 70%, chegando de 80 a 85%. De toda sorte, mesmo no melhor cenário, se nada for feito, assumir o risco de 70% dos brasileiros pegarem a Covid-19, significa dizer que teremos por volta de 146 milhões de brasileiros infectados. Ainda no melhor dos cenários, teríamos, de imediato, em poucos dias, cerca de 1.022.000 brasileiros mortos”.

Além do número elevado de vítimas, o juiz ponderou que a contaminação elevada por uma grande quantidade de pessoas ao mesmo tempo geraria colapso do sistema de saúde, que acabaria deixando de atender pacientes com outras enfermidades.  “Colapso no sistema de saúde significa dizer que não haverá leito de hospital e muito menos UTI para ninguém, mesmo que tenha condições financeiras de custear no setor privado, mesmo que tenha ordem judicial para isso. Não há vaga, não há leito, não há UTI para doença alguma”, frisou.

Decretado em março pelo Governo Estadual, o isolamento social ajudou a controlar os níveis de infecção, na opinião do magistrado. Contudo, ele salientou que o afrouxamento recente das medidas de confinamento, sem critérios, “demonstram que a doença voltou a avançar com velocidade preocupante, não só no Brasil, mas, inclusive, em Goiás . Nesse quadro, parece claro que o distanciamento social e medidas de controle, embora não impeçam a contaminação em si, retardam a disseminação da doença”.

Por fim, o titular de Crixás defendeu que assumir “abertamente a morte de milhões de pessoas é definitivamente uma conduta incompatível com o que determina a Constituição Federal”. Ele afirmou que apesar de as pessoas afetadas  sejam de um suposto grupo de risco, “denominado de 'minoria' (que aliás tem se mostrado questionável dado o número de jovens mortos), a democracia não se resume ao governo da maioria, pois tem função primordial de efetivar direitos fundamentais, inclusive das minorias. Principalmente quando o que se está em jogo é a saúde e a vida de milhões de pessoas, direitos fundamentais que, como dito, compõem o conceito de mínimo existencial, pela estreita ligação com o princípio da dignidade humana”.

Decreto Estadual

O Decreto Estadual n. 9.653/2020 reforçou a competência concorrente dos Municípios para as políticas de combate à pandemia, mas destacou que as medidas sejam fundadas em nota técnica da autoridade sanitária local, respaldada em avaliação de risco epidemiológico diário das ameaças (fatores como a incidência, mortalidade, letalidade, etc.) e vulnerabilidades (fatores como disponibilidade de testes, leitos com respiradores, recursos humanos e equipamentos de proteção individual), conforme elucidou o magistrado.

Contudo, o juiz ressaltou que, no presente caso, não se trata de confronto de validade entre os Decretos Municipais (n. 142/2020 e n. 156/2020) e o Decreto Estadual n. 9653/2020. “A questão é a análise sobre a efetividade da medida e as ações ou omissões resultantes de violações de direitos fundamentais à saúde e à vida. Em específico, observo que o Decreto Municipal n. 142/2020 autorizou que todos os estabelecimentos empresariais retomassem as suas atividades, com algumas observações de medidas de prevenção, em confronto com o que determina o Decreto Estadual n. 9653/2020, que manteve suspensas as atividades econômicas organizadas para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, e enumerou as atividades essenciais e que não se incluem nas atividades que deverão permanecer suspensas”.

Por fim, Alex Alves Lessa afirmou que é preciso analisar critérios que justifiquem a flexibilização, como controle da transmissão, que somente é possível com ampla testagem e acompanhamento com equipe técnica e treinada; oferta suficiente de serviços médicos e de saúde pública, controle dos riscos de importação do vírus, entre outras.  “Crixás, mesmo sem pandemia, já tem sérios problemas com o sistema municipal de saúde que não funciona, pela falta de médicos, falta de medicamentos e insumos básicos, tanto que recentemente teve seu hospital municipal interditado pela Vigilância Sanitária, bem como há uma ação de improbidade administrativa em andamento pelo descumprimento reiterado de decisões judiciais e suposto descaso com a saúde (...). Além disso, a cidade tem a séria peculiaridade de receber pessoas de outras cidades, estados e até países, em razão de sua atividade de Mineração por empresas multinacionais”. Veja decisão(Texto: Lilian Cury - Centro de Comunicação Social do TJGO)

 
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