O sonho de se tornar uma cantora de funk motivou Pabline Teixeira Bonfim, de 12 anos, a sair de Natividade (TO) e se submeter no sábado (24) a um teste molecular no povoado Recanto das Araras, em Faina (GO), para compreender melhor a doença que a acomete desde os três primeiros meses de vida. Com o rosto marcado por vários tipos de manchas e melanomas decorrentes do xeroderma pigmentoso (XP) a garota está entre as 700 pessoas portadoras da enfermidade atendidas no fim de semana (24 e 25), durante ação realizada na localidade com maior índice da doença no mundo. As atividades foram acompanhadas pela juíza Alessandra Gontijo do Amaral, diretora do Foro de Goiás, no domingo (25).
A jovem conta que, em razão da doença, já foi vítima de muitos preconceitos na escola e na rua, mas garante que não desistirá de lutar pelo seu maior desejo. “Estou aqui hoje porque quero melhorar e conhecer melhor minha doença. Vou ser famosa e um dia as pessoas vão me respeitar independentemente da doença, porque vão entender o que ela representa para todos nós. Tenho colegas que saem de perto quando chego e já entrei em restaurante onde as pessoas não sentam no mesmo lugar que eu. Ninguém sabe, mas a gente se sente, no fundo, um monstro”, afirma entristecida.
Pabline faz parte de um grupo raro de portadores do XP – doença genética incomum, na qual o portador possui dificuldade de reverter as agressões que a radiação solar provoca no DNA das células da pele e desenvolve rapidamente lesões degenerativas na pele, tais como sardas, manchas e diversos cânceres da pele, em um processo acelerado de fotoenvelhecimento, que mutila e mata. Os pais não são parentes – estudos comprovam que a probabilidade de desenvolver a doença é de no mínimo 50% se os filhos são de casamentos consanguíneos.
“Esses casos são atípicos e por essa razão são objeto de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP). A Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) deslocou a equipe de profissionais até Araras para auxiliar na investigação da raiz desse problema e prestar atendimento de qualidade, digno, a todas essas pessoas carentes. Contamos até com um centro cirúrgico móvel para realizar as operações que julgamos necessárias”, explicou o dermatologista Gabriel Gontijo, presidente da SBD. Participaram da iniciativa cerca de 20 profissionais da saúde. Também foram repassadas orientações jurídicas aos portadores da doença.
Contudo, segundo expôs Gabriel Gontijo, é importante que o profissional que lida com esses doentes esteja livre de preconceitos e os acolha de forma diferenciada, uma vez que em cada 1 milhão de habitantes no mundo 1 apresenta a doença e em Araras de cada 40 habitantes 1 sofre desse mal. “O índice do xeroderma pigmentoso aqui é altíssimo e as pessoas sofrem muito, são vítimas de preconceitos diversos. É importante ter consciência de que a doença não é contagiosa nem transmissível por vírus ou outro tipo de bactéria. É realmente uma deficiência genética que torna o paciente intolerante à exposição da luz solar. Ele passa a desenvolver vários tipos de tumores e daí vem as mutilações. É preciso compreender o problema, para aprender a lidar com ele de maneira adequada e mais humana. Por isso a SDB se propôs a estar aqui hoje”, asseverou.
O geneticista Rafael Souto, do Departamento de Oncologia da Secretaria da Saúde do Estado de Goiás, esclareceu que a análise do DNA é importante para melhor compreensão da mutação referente ao xeroderma pigmentoso. “Fazemos o teste molecular através da coleta da saliva, que é indolor, e nessa fase de primeira triagem se o teste der positivo e ficar constatada a doença encaminhamos para a análise da USP, em São Paulo”, informou, ao explicar ainda que os exames são feitos após a assinatura de um termo de consentimento dos enfermos.
Advogada da comunidade XP desde 2012, Keila Jacob de Assis Adorno Godinho explicou que foram feitos 68 atendimentos no âmbito jurídico no fim de semana. Ela ressaltou a importância do papel desempenhado pelo Poder Judiciário nesse sentido, de forma a garantir direitos básicos legais e maior dignidade aos portadores de xeroderma pigmentoso.
Após passar por mais de 70 procedimentos cirúrgicos ao longo dos seus 82 anos, João Gonçalves da Silva foi operado mais uma vez em Araras para extração de tumores no nariz e na face, graças ao Centro Cirúrgico Móvel montado especialmente para atender os doentes. Desde criança ele sente dores devido ao XP, mas a doença se manifestou com mais agressividade aos 20 anos. Dessa forma, vieram os inúmeros tratamentos e cirurgias que acabaram com as poucas economias que ele tinha.
“Não enxergo direito e a doença afetou meu rosto e meu corpo. É como se alguém te marcasse para sempre com ferro à brasa. Mesmo assim sou grato a Deus porque hoje não preciso pagar para fazer mais uma cirurgia porque não tenho condição. Esses médicos e pessoas que estão nos ajudando são anjos”, emocionou-se.
Estratégia comportamental e treinamento para capacitar profissionais da saúde
Um treinamento específico foi promovido na segunda-feira (26) pela Secretaria de Saúde do Estado de Goiás (SES) com vários profissionais de saúde de Faina e Matrinchã que lidam mais de perto com os portadores de xeroderma pigmentoso. A gerente de Programas Especiais da SES, Édna Maria Covem, conta que o projeto é uma continuidade do primeiro módulo concretizado no ano passado. “Estamos capacitando esses profissionais para que prestem um atendimento mais eficaz a essa população. Eles é que são responsáveis pelo acompanhamento contínuo da comunidade e precisam estar cientes das ações de prevenção e receberem o treinamento necessário para que o serviço seja feito a contento”, evidenciou.
Para a psicóloga Telma Noleto Rosa, do Hospital Geral de Goiânia, é necessário montar uma estratégia comportamental de adesão dos psicólogos para que seja desenvolvido um trabalho sistemático e constante com os doentes. “A prevenção tem de ser feita todo dia, não pode ser só pontual, bem como o tratamento psicológico. Podemos aliviar o estresse e dar uma melhora emocional paliativa. Mas os atendimentos devem ser individuais e contínuos porque a ferida emocional é sempre mais profunda. As pessoas precisam ser escutadas, não dá para se restringir só ao aspecto físico”, alertou.
Título de reconhecimento
Com o auditório da Câmara de Vereadores de Faina lotado e com a presença maciça da comunidade de Araras, a juíza Alessandra Gontijo recebeu o Título de Cidadã Fainense, no Plenário da Casa na noite de sexta-feira (23). A homenagem foi em reconhecimento ao esforço e dedicação prestados em prol dos portadores do xeroderma pigmentoso. Homenageada também com um vídeo especial sobre a sua história com a população de Araras, a magistrada deixou a emoção tomar conta e foi às lágrimas ao afirmar que elegeu essa comunidade pela história de dor e sofrimento. “O exercício da magistratura, ao longo de mais de uma década, possibilitou-me um estreito e valioso contato com a população do Estado e agora desta cidade. Aprendi a conhecer as dificuldades da nossa gente, na sua maioria honesta e trabalhadora. Sinto-me, deste modo, ligada sentimentalmente à sorte desta comunidade”, frisou.
A magistrada ressaltou a necessidade de despertar a consciência de que a solidariedade é o meio de buscar a justiça maior, que é a de natureza social. “Neste mundo marcado pelo egoísmo, a sociedade perdeu o sentido da solidariedade. Não é exclusivamente estatal a tarefa de preservar a dignidade do ser humano. Essa missão é nossa, de todos, de cada um. O magistrado não pode usar a toga como escudo e não assumir sua parcela de responsabilidade”, enfatizou, pontuando que o Direito deve ser um instrumento de transformação social.
Sentindo-se grata pelo gesto de reconhecimento, a juíza lembrou que após o amor, a maior virtude é o sentimento de gratidão. “Os mestres sábios nos ensinam a agradecer tanto as coisas boas como as ruins, compreendendo que tudo acontece para o melhor e segue um plano divino. Para ser grato é preciso ter sensibilidade, humildade, enfim, é preciso ter amor, o maior dos sentimentos”, comoveu-se.
Presente à solenidade, a presidente da Associação Brasileira dos Portadores do Xeroderma Pigmentoso (ABRAXP), Gleice Machado, agradeceu todo o empenho de Alessandra Gontijo para auxiliar a comunidade, que, conforme acentuou, foi esquecida pelo mundo durante muitos anos. “Que me perdoem os homens. Mas foi necessário uma mulher, uma mãe, para nos conceder esse direito tantas vezes negligenciado. Que a sua árdua missão de levar Justiça a quem de fato necessita seja contínua”, almejou.
Sobre o XP
O xeroderma pigmentoso (XP) é uma doença genética rara, na qual o portador possui dificuldade de reverter as agressões que a radiação solar provoca no DNA das células da pele. Nas pessoas saudáveis, um mecanismo corrige as alterações causadas pela radiação ultravioleta no DNA e, por isso, os malefícios provocados pelo sol só vão aparecer com o dano acumulado após muitos anos. Devido à deficiência desse mecanismo de correção, os pacientes de XP desenvolvem rapidamente lesões degenerativas na pele, tais como sardas, manchas e diversos cânceres da pele, em um processo acelerado de fotoenvelhecimento, que mutila e mata.
Por não haver registro de tamanha incidência dessa enfermidade em nenhuma outra parte do mundo, os doentes de Araras são objeto de estudo do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), maior do País no segmento. Cerca de 200 famílias residem em Araras. A maioria é formada por casamentos entre parentes, principalmente primos. Foi justamente essa cultura que culminou na perpetuação e proliferação da doença na comunidade, já que é comum entre nascidos da união entre pessoas da mesma família. A estimativa de casos no mundo é de 1 em cada grupo de 200 mil pessoas, contudo, em Araras, mais de 20 histórias foram registradas em 2010, a maior média do mundo.
A doença afeta ambos os sexos e além do risco de câncer de pele ser aumentado em mil vezes, a incidência de cânceres internos, em 15 vezes. As lesões cutâneas estão presentes nos primeiros anos de vida, evoluindo de forma lenta e progressiva, e são diretamente relacionadas à exposição solar. Aos 18 meses, metade dos indivíduos afetados apresenta algum sinal lesões nas áreas expostas ao sol; aos 4 anos cerca de 75%, e aos 15 anos, 95%.
Os indivíduos podem exibir ainda anormalidades neurológicas progressivas (observadas em cerca de 20% dos casos) e alterações nos olhos. Aproximadamente 80% deles apresentam alterações oftalmológicas que incluem fotofobia, conjuntivite, opacidade da córnea e desenvolvimento de tumores oculares. Cerca de 20% dos pacientes têm alterações neurológicas como microcefalia, ataxia (perda de coordenação dos movimentos musculares voluntários), surdez neurossensorial e retardo mental. Há também aumento do risco de outros tumores cerebrais, gástricos, pulmonares e leucemia. (Texto: Myrelle Motta - Centro de Comunicação Social do TJGO/Fotos: Wagner Soares)