Integrante do grupo de trabalho que elaborou o relatório final sobre Política de Priorização do Primeiro Grau de Jurisdição, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o juiz federal Friedmann Anderson Wendpap concedeu entrevista exclusiva ao site do Tribunal de Justiça de Goiás. Ele foi um dos palestrantes do Fórum Planejamento, Estratégia e Gestão: Magistrados e Servidores Pensando o Futuro do Judiciário Goiano, encerrado hoje em Pirenópolis.
Na ocasião, defendeu equalização tanto do volume quanto da qualidade dos recursos humanos e materiais distribuídos para as primeira e segunda instâncias, apontou caminhos possíveis – destacando, entre eles, o investimento em automação; atacou os métodos “arcaicos” de trabalho no Judiciário brasileiro. E foi taxativo: “As pessoas tem de atuar com inteligência, gerir os recursos, planejar, encontrar soluções. Pra fazer serviço mecânico, existem as máquinas”. Leia, abaixo, a entrevista.
Por Patrícia Papini
O CNJ está completando nove anos de instalação. Como o senhor avalia esse período?
Sem dúvida, um período de adaptação e, como tal, difícil, exaustivo. O Judiciário brasileiro funcionava como um arquipélago, composto por várias ilhas com diferentes pensamentos e condutas. O CNJ veio pra promover alinhamento, harmonia administrativa, definição da padrões éticos para o Judiciário, níveis mínimos de produtividade. E veio, também, para levantar dados. Mas isso é trabalhoso e provoca resistências, como no caso do Justiça em Números. O CNJ insiste porque os dados, a informação, o relatório enfim é que nos permite gerir. Não existe gestão sem informação. Pense em um cego e surdo dirigindo um carro. Para onde vai ? Quando se dirige um carro há um conjunto de informações auditivas e visuais que nos permitem dirigir. Ao dirigir uma empresa, uma associação, uma igreja ou um ente público – como um tribunal ou uma vara judicial - é necessário ter informações porque a direção precisa disso. Claro que um mínimo de informação a gente já tinha. A Constituição Federal, por exemplo, informa que o Estado existe para o bem público. Isso é informação e todos sabemos disso, mas o que ocorria, e ainda ocorre, na administração pública no Brasil – isso não é peculiaridade do Judiciário – é a falta de informação fina, informação detalhada.
Houve resistência ?
O problema é que os métodos do judiciário brasileiro são muito arcaicos. Tudo é feito no papel, sobretudo na área administrativa – em departamentos de recursos humanos, orçamento, licitação, por exemplo. E o papel não exporta informação, a gente tem de ir lá, ler e copiar, e isso é muito trabalhoso. Coletar e compilar dados é cansativo e, além disso, as pessoas tem de desenvolver as atividades próprias de seus cargos. Por isso, por entender que produzir dados gerenciais não é obrigação delas, as pessoas resistem em gastar tempo com isso. Mas é importante que passem a admitir que isso também faz parte do trabalho e que, justamente, para que as condições de trabalho melhorem, é necessário que tenhamos informação.
O senhor defende o investimento em automação nos tribunais. Acredita que isso poderia auxiliar no levantamento desses dados ?
Com certeza. Como juiz-auxiliar do CNJ, já visitei lugares onde havia 40 pessoas no departamento de recursos humanos, para cuidar de um universo de 1, 3 mil servidores, porque era tudo no papel. É gente demais para cuidar de servidor, não ? Se houvesse automação, que é uma etapa posterior à da informatização, seriam necessárias, no máximo, 10 pessoas no RH, o que permitiria alocar o restante dessa força de trabalho em áreas que necessitem, efetivamente, de inteligência. Com a automação, todas as fichas funcionais estariam digitalizadas, não como imagem, mas como informação produzida em ambiente eletrônico. Vamos imaginar, por exemplo, que um servidor precise fazer uma viagem a trabalho, ou que um juiz tenha de ser removido. A máquina já faria tudo, cuidaria da diária, do transporte, tudo. Num tem de ir lá e registrar, passar para o departamento tal pra solicitar carro e, em outro departamento, pedir a diária, e tal. A automação elimina o trabalho humano não inteligente.
Qual o impacto que isso pode promover ?
Um impacto enorme, porque é ainda muito grande o volume de força de trabalho alocada para a atividade meio. É preciso que a força de trabalho se concentre, mais, na atividade fim. Mas, para isso, é necessário automação. À medida que a gente aumenta a automação, podemos tornar a atividade meio menor e, com isso, vai sobrar energia para a atividade fim. O Judiciário não existe para ter um RH ótimo controlando seus funcionários, mas para prestar jurisdição. Ter um RH é uma notinha de rodapé nisso tudo. Estou citando o RH mas isso serve para todos os departamentos que atuam na atividade-meio, como departamento de compras, almoxarifado, arquivo, por exemplo.
Eu fui programador de computador e sei que, num passado recente, as pessoas ficavam naqueles delírios de ficção científica, achando que as máquinas iriam roubar o trabalho das pessoas, aquela coisa toda. Isso é uma tolice. As máquinas fazem o trabalho não inteligente. E, ao fazerem isso, os humanos vão descobrindo novas ocupações, no mesmo espaço. Sempre há trabalho. E, na verdade, no Judiciário, o processo eletrônico, por exemplo, faz com que as pessoas trabalhem muito mais, porque tudo gira muito mais rápido. Um mandado de segurança da Justiça Federal, no sul, roda em 30 dias. Com isso, a quantidade de processo aumenta, não diminui, porque, confiante na Justiça, a sociedade tende a procurá-la ainda mais. Então, veja que o trabalho, com a informatização cada vez maior, não diminui, as máquinas não substituem pessoas, mas as pessoas passarão a ter de trabalhar menos mecanicamente e com mais uso da inteligência, porque o trabalho mecânico não precisará mais de pessoas.
Parece não haver um limite muito preciso entre o que é atividade-meio e atividade fim, procede ?
Sim. De um modo geral, não há muita clareza e consenso no serviço público sobre o que é atividade meio e o que é atividade fim. Há algumas atividades, em especial, que ficam numa zona nebulosa, sobre as quais há grande diferença de posições. Por exemplo: motorista é atividade meio. Seguramente. Mas e oficial de justiça ? Há quem defenda que é atividade meio. Pessoal da informática é difícil dizer porque, como os processos estão se tornando eletrônicos, há quem diga que são atividade fim, porque estão diretamente ligados à produção da jurisdição. Eu continuo achando que não. Que é só mídia. E o que é mídia ? Mídia é meio, é o suporte sobre o qual se registra a informação. Eu poderia, como no passado, escrever sobre uma pedra, numa tábua ou num papiro. Esses três são mídia, mas o papiro era mais fácil de transportar. É só o veículo.
Mas qual a relevância dessa clareza para o CNJ ?
É importante para que, futuramente, possamos chegar ao que costumo chamar de 'equilíbrio ótimo de Pareto'. Pareto foi um sociólogo italiano e, basicamente, o que ele estabelece a teoria do 80/20. É o seguinte: você tem uma sorveteria de sabores do cerrado que dispõe de 100 sabores e percebe que 80% da sua freguesia consome sempre os mesmos 20 sabores. Compensa você ter essa lista de 80 sabores que são consumidos por apenas 20% da sua freguesia? Não, porque eles te dão custo. Você vai acabar concentrando sua oferta nos 20 sabores mais consumidos e, dentre esses, certamente vai vender mais sorvete de chocolate e de morango, que são os mais procurados. Outros exemplos: 20% dos motoristas do mundo cometem 80% das infrações de trânsito. Você só usa 20% das roupas disponíveis no seu armário. A gente encontra o 'equilíbrio ótimo de Pareto' em todas as situações da vida e, para o Judiciário especificamente, o equilíbrio ótimo de Pareto ocorrerá quando tivermos apenas 20% dos nossos servidores na atividade meio e 80%, na atividade fim. Queremos quem na atividade fim ? Ora, todos aqueles que contribuem diretamente para que o processo fique maduro para decisão, ou seja, servidores da vara, assistentes e assessores diretos do juiz, escreventes, escrivães, oficiais de justiça, peritos, entre outros.
Para esse manejo, seria necessário saber, com exatidão, quem está onde, nos tribunais. O senhor criou uma especie de tabela de lotação de pessoal, que chamou de lotaciogram...
Sim, quando geri a Justiça Federal do Paraná, e disponibilizei o lotaciogram na internet. Por ele, é possível perceber a quantidade de força de trabalho alocada para cada setor. Temos de considerar que o serviço público não é como o setor privado, no Natal, quando se contrata temporários para se demitir depois. Houve uma época, por exemplo, em que a justiça federal chegou a ter 10 milhões de demandas do FGTS. Aquilo ali não parecia que era uma tsunami, uma onda que passaria. Parecia que era permanente. Se, naquela época, a Justiça Federal tivesse sido ampliada pra atender aqueles processos, ela nunca mais encolheria. Mas esses processos passaram, acabou. Então, nós precisamos que considerar uma certa maleabilidade na movimentação da nossa força de trabalho. E, para isso, saber onde essa força está alocada é fundamental. Esse conhecido permite visualizar com facilidade as inadequações de quantidade e de capacidade.
E fazer esse manejo de pessoal é uma questão de gestão...
Exatamente. Gestão é inteligência. Somente pessoas podem gerir. Somente pessoas podem, com o uso das informações, definir o melhor uso dos meios disponíveis para se alcançar maior eficiência, produtividade e eficácia.
O senhor disse que o juiz tem, necessariamente, de ser um gestor. Porquê ?
Porque ele administra a vara pela qual responde. Imagine o juiz fulano de tal, da 2ª Vara Cível da comarca X. Do ponto de vista jurisdicional, essa vara é uma casa de justiça. Do ponto de vista do administrador, ela é um conjunto de pessoas que desenvolvem atividades para preparar um processo, deixá-lo maduro, para decisão. São pessoas, computadores, papéis, instalações, escrivanias, cadeiras, etc e, ao gestor, cabe gerir esses recursos – humanos e materiais – para se alcançar o melhor resultado possível na prestação jurisdicional. Esse dever é, sim, do juiz daquela vara. O juiz não pode esperar a estrutura ideal para buscar o resultado ideal.
Com relação à priorização do primeiro grau de jurisdição, o senhor defende a criação de comitês orçamentários nos tribunais. Porquê ?
Entre outros motivos, para promover a discussão do orçamento e, assim, aumentar a quantidade de inteligencia aplicada na destinação, na distribuição de recursos disponíveis, que são muito escassos. Mas,igualmente, para promover a vigilância quanto à alocação de recursos para o segundo grau, em detrimento do primeiro grau de jurisdição.
Também com o mesmo intuito, senhor falou em livre trânsito dos servidores nos dois graus de jurisdição. Como isso se daria?
Na Justiça estadual de Pernambuco, por exemplo, a carreira é una, como na Justiça Federal. Não há diferença entre ser, digamos, assessor do juiz ou do desembargador. O salário é o mesmo, é tudo a mesma coisa e, com isso, o tribunal deixaria de ser o centro gravitacional, para onde todos querem ir porque a remuneração é maior. Quando chegarmos a esse ponto, morar numa comarca lá no fim do mundo se tornará atrativo.
Ainda sobre as causas da alta taxa de congestionamento no primeiro grau de jurisdição, o senhor aponta a necessidade de criar unidades avançadas de atendimento da Justiça Federal nas unidades estaduais. Porque?
É que é imensa a gama de competência da justiça estadual e isso abarrota muito a instância. A matéria previdenciária é da competência federal mas, onde não há justiça federal, quem preside esses processos são os juízes estaduais, por delegação, prevista na Constituição Federal. Isso pesa muito para a Justiça Estadual, daí a importância de que criem essas unidades. Só pra ilustrar, em Manacapuru, comarca do interior do Amazonas, 60% do acervo do fórum é matéria previdenciária, que é de competência federal. O CNJ, juntamente com o Conselho da Justiça Federal, que é sediado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) está estudando como fazer para instalar essas unidades dentro da Justiça Estadual. Na verdade, é um postinho da Justiça Federal, uma placa na parede, dizendo 'aqui tem Justiça Federal'. No Rio Grande do Sul não existe mais juiz estadual com competência em previdenciário.
O senhor também citou o volume de execuções fiscais como um dos fatores de sobrecarga no primeiro grau.
É verdade. Cerca de 30 milhões dos 93 milhões de processos no Brasil são execução fiscal. É preciso desjudicializar isso, mas o CNJ, evidentemente, não tem poder para isso. Seria preciso mudar a lei. Mas o CNJ emitiu uma opinião, em uma nota técnica, dizendo que é necessário desjudicializar as execuções fiscais, porque os números são absurdos, uma situação quase de faz-de-conta. E o pior: o custo da tramitação dessas demandas é, via de regra, superior ao do crédito reclamado. Não faz sentido.