A distância e a dificuldade de acesso são fatores que contribuem para o isolamento das comunidades kalunga, instaladas em regiões remotas próximas da Chapada dos Veadeiros. O pouco contato com os centros urbanos resulta,também, em obstáculo para obter documentações. Somente nesta terça-feira (29), no segundo dia do Justiça Ativa em Cavalcante – cidade que abrange parte dos antigos quilombos – foram proferidas três sentenças para reconhecimento tardio de óbito.
“Vivemos em uma ilha em Vão das Almas. É uma verdadeira ilha, em vários sentidos, mas, em vez de água, são serras por todos os lados”, conta o lavrador Faustino dos Santos Rosa, de 69 anos. Chamado para depor como testemunha no caso da morte de Nascimenta da Silva, em 1991, ele relata como era árduo o caminho de sua residência, no núcleo Pé da Preta, até a cidade.
“Quando alguém adoecia, tínhamos que carregar numa rede e trazer para a cidade, a pé ou a cavalo. São 60 quilômetros e, na época, não chegava carro. Já perdemos muita gente picada por cobra e mulheres gestantes no caminho”, lembra o lavrador. Hoje, no Pé da Preta, espécie de vila dentro do Vão das Almas, há estrada e, para alguns dias da semana, é possível combinar transporte com um veículo – contudo, ainda não há telefone nem energia elétrica.
Nascimenta adoeceu e, em poucos dias, morreu em sua própria casa, conforme relatos dos depoentes. Foi enterrada no Cemitério da Gameleira, ali perto. Sem nenhum registro de óbito até então, seu marido, Rosário dos Santos Rosa, ajuizou ação para que fosse reconhecida legalmente a morte da mulher e, então, pleitear benefícios previdenciários.
A filha do casal, Percília Rosa explica que o pai, de 86 anos, sofre de doenças renais e na próstata e, por isso, seria positivo receber a renda extra. "Ele não tem mais condições de morar em Vão das Almas, precisa de tratamento médico. Aqui, na cidade, com o dinheiro, ele pode viver melhor – ele já está morando na casa do meu irmão, mas precisa de ajuda", relata.
A situação é semelhante para Estevão Pereira Soares. Sua mulher, Rosa da Cunha Fernandes, morreu em 2000 e, até hoje, também estava sem o registro de óbito. Kalunga, o casal morava no Vão do Moleque, outra base nuclear próxima a Cavalcante. "Eram três dias a cavalo para chegar a cidade, não tinha como vir na época. As pessoas nasciam, morriam e ficavam por lá mesmo", relata.
As sentenças foram proferidas pelos juízes Nickerson Pires Ferreira (autores Rosário dos Santos e Gercino Torres Magno) e Luiz Antônio (autor Estevão Pereira Soares), logo após as audiências. Ambos magistrados observaram o artigo 83 da Lei 6.015/1973, que prevê em caso de assentos posteriores ao enterro, a morte poderá ser comprovada por meio de depoimentos de testemunhas que possam identificar o cadáver.
Justiça Ativa
O Justiça Ativa em Cavalcante começou nesta segunda (28) e vai até quinta-feira (1), com 244 processos em pauta, além dos atos em auxílio. A iniciativa conta com apoio de cinco juízes, designados, especialmente, para atuar na comarca durante o evento: Everton Pereira Santos (1º Juizado Espacial Cível e Criminal da comarca de Catalão), Fernando Ribeiro de Oliveira (Juizado Especial Cível e Criminal de Trindade), Luiz Antônio Afonso Júnior (1ª Vara – Cível Criminal e da Infância e da Juventude de Ipameri), Nickerson Pires Ferreira (2ª Vara - Cível, das Fazendas Públicas e de Registro Público de Inhumas) e Simone Pedra Reis (Vara Criminal de Cidade Ocidental). Do Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), atuam os promotores de Justiça Úrsula Catarina Fernandes da Silva Pinto, Douglas Roberto Ribeiro de Magalhães Chegury e Paula Moraes de Matos. (Texto: Lilian Cury/Fotos: Wagner Soares/Centro de Comunicação Social do TJGO)