Apesar dos avanços na legislação, a exemplo da Constituição e da própria Lei Maria da Penha, o sistema normativo brasileiro não é suficiente para o enfrentamento da violência doméstica. A afirmação é do vice-coordenador da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJGO, juiz Vitor Umbelino Soares Júnior, que junto à integrante do Conselho Estadual de Educação do Estado de Goiás e presidente da Câmara Superior de Educação, Gláucia Maria Teodoro Reis, falará sobre o tema na última edição do ano da Semana Nacional da Justiça Pela Paz em Casa.

Segundo o magistrado, para aumentar a efetividade do sistema normativo brasileiro no que diz respeito à violência doméstica e familiar, sua aplicação teria que ser articulada com as normas previstas nos tratados e convenções internacionais sobre o assunto. Além disso, ele defende uma mudança “na educação e na cultura de uma sociedade que ainda encontra-se permeada por valores machistas e sexistas, inibidores de novos avanços.”

Vitor Umbelino acredita ainda que o sistema normativo, por si só não consegue dar a resposta para um fenômeno tão complexo, que deve ser enfrentado com políticas públicas de incentivo à prevenção e ao combate à violência doméstica contra a mulher, sendo necessária a adoção de estratégias para inibir padrões comportamentais e discriminatórios que ainda expressam a desigualdade de gênero em nossa sociedade.

A abertura da Semana Pela Paz em Casa, com a participação da presidente da coordenadoria da Mulher, desembargadora Sandra Regina Teodoro Reis, e com a ex-conselheira do Conselho Nacional de Justiça, Ivana Farina, será na segunda-feira (22), às 9 horas. Nesse dia, haverá palestra com Ivana Farina sobre políticas de equidade de gênero. Todos os eventos serão transmitidos pelo canal da Escola Judicial do Estado de Goiás, no Youtube.

 

 

 

Veja a entrevista completa com o juiz Vitor Umbelino:

 

1. Sobre o tema que o senhor abordará na abertura da Semana Pela Justiça Pela Paz em Casa, devolvo a pergunta: o sistema normativo brasileiro é suficiente para o enfrentamento da violência doméstica? Por que?

Definitivamente, não. O sistema normativo brasileiro faz parte de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres e que, para ter a efetividade esperada, necessita de uma aplicação não isolada, mas articulada com as declarações de direitos, tratados e convenções internacionais. Apesar da Lei Maria da Penha ser considerada uma das legislações mais avançadas do mundo na proteção da mulher vítima de violência, é por meio do sistema normativo internacional dos direitos humanos que encontramos a principiologia própria que conduz as balizas interpretativas de todos os textos normativos que devem ser aplicados nesse âmbito. É bom lembrar que no plano de proteção internacional no qual o Brasil também se insere, a própria Constituição da República estabelece em seu art. 5º, §2º que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados e dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Aqui devemos citar alguns que tratam especificamente dos direitos das mulheres, como a Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - 1979), ratificada em 1984 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará – 1994), ratificada em 1995.

2. Como o senhor vê o sistema normativo brasileiro em relação ao sistema global de proteção aos direitos humanos, no que diz respeito à violência contra a mulher?

O Brasil possui um sistema normativo de proteção à mulher vítima de violência doméstica muito avançado, talvez um dos melhores do mundo. Porém, embora a Lei 11.340/2006 e legislação correlata constituam avanços jurídicos e políticos significativos na concretização da internacionalização dos direitos humanos das mulheres no âmbito normativo interno, a plena efetividade desses direitos ainda demanda uma articulação dos instrumentos dispostos nessa legislação e os mecanismos jurídicos que fazem parte dos sistemas global e regional de proteção aos direitos humanos das mulheres, de forma a se garantir não só a igualdade de gênero em seu aspecto normativo e político, mas uma mudança de mentalidade social e cultural em relação aos comportamentos discriminatórios contra as mulheres.

3. Apesar das conquistas legais, tanto na constituição de 88 quanto na Lei Maria da Penha, a desigualdade de gênero e a violência contra a mulher continuam desafiadoras. Isso passa por uma mudança cultural?

Sim, não temos dúvidas sobre isso. Com a Constituição Federal de 1988, houve abertura de espaços para avanços na legislação protetiva dos direitos das mulheres e na conquista de uma plena cidadania pautada pela igualdade de direitos e pela inclusão social. Porém, não podemos nos esquecer de que avanços normativos não são suficientes para a transformação social que tanto almejamos. Embora tenhamos textos normativos importantes relativamente à proteção dos direitos das mulheres, e tendo o Brasil ratificado os principais tratados internacionais no âmbito dessa proteção, sabemos que a legislação não é a única solução para se alcançar a isonomia de gênero e o fim da violência doméstica contra a mulher. A complexidade desse fenômeno perpassa por mudanças que devem acontecer não só no âmbito do sistema jurídico, mas especialmente na educação e na cultura de uma sociedade que ainda encontra-se permeada por valores machistas e sexistas, inibidores de novos avanços.

4. Se a mera existência de lei não promove mudança de padrão cultural sexista, que tipo de políticas públicas poderiam ser adotadas para esse enfrentamento?

Além de um sistema normativo eficiente, é consenso entre estudiosos do tema que é preciso criar e implementar políticas públicas de incentivo à prevenção e ao combate à violência doméstica contra a mulher, especialmente por meio da adoção de estratégias que levem à reflexão crítica sobre os padrões comportamentais e discriminatórios que ainda expressam a desigualdade de gênero em nossa sociedade. Assim, acreditamos que esse padrão cultural deve ser enfrentado a partir de uma abordagem integral. Nesse sentido, defendemos a adoção de políticas públicas que tenham como eixos os fatores educação e cultura, com a constituição de uma rede de serviços, apoio e atendimento às mulheres em situação de violência baseada na defesa de seus direitos humanos e na ampliação do acesso à justiça, de forma que programas como Educação e Justiça: Lei Maria da Penha na Escola e os grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica contra mulheres não se limitem a iniciativas pontuais e específicas de profissionais que trabalham no âmbito dessa temática.

5. Ações como a Semana da Justiça Pela Paz em Casa ajudam a mudar esse cenário? Houve aumento de denúncias depois dessa política?

Sim, acreditamos que as ações desenvolvidas e articuladas no âmbito da Semana da Justiça pela Paz em Casa contribuem não só para a prevenção e enfrentamento da violência doméstica contra a mulher em nosso estado, mas também para uma mudança do padrão cultural que ainda é responsável pela estrutura das relações de poder e desigualdades histórico-culturais existentes entre homens e mulheres. Além de um concentrado de esforços de juízes, promotores de justiça, advogados e servidores para realização de vários atos processuais, temos atividades extrajudiciais que são desenvolvidas durante a semana como palestras, seminários, rodas de conversa que buscam contribuir para a formação de uma cultura de paz na sociedade e nas relações familiares. Sem dúvida, o aumento das denúncias dos casos relacionados à violência doméstica contra a mulher está relacionado a uma maior conscientização das mulheres vítimas desse tipo de violência, o que demonstra a importância da realização de ações como a Semana da Justiça pela Paz em Casa por parte dos Tribunais de Justiça, com a promoção de serviços de atendimento, apoio e orientação em todo o estado. (Entrevista: Aline Leonardo - Centro de Comunicação Social do TJGO)

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