“A casa não é um lugar seguro para a mulher brasileira”. A afirmação é da professora Alice Bianchini, doutora em Direito Penal pela PUC-SP e vice-presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas (ABMCJ). Ela é uma das principais convidadas da Semana da Justiça Pela Paz em Casa, que será realizada de 16 a 20 de agosto, numa promoção do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), por meio da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, e falará sobre Criminologia Feminista e a Lei Maria da Penha, na segunda-feira (16), às 9h30, pelo canal do Youtube da Escola Judicial do Estado de Goiás (Ejug).

Numa entrevista concedida ao site do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, a professora, que é também vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada, afirmou que quase 90% dos feminicídios, durante ou após o relacionamento, são causados por seus companheiros, maridos ou namorados e que a maioria desses crimes ocorre dentro de casa. Segundo ela, mais do que pedir para que as mulheres denunciem, é fundamental entender que a violência é cultura e que seja promovido um trabalho com todos os envolvidos na situação, inclusive com os agressores. Leia mais abaixo.


É possível uma criminologia feminista? Por que é tão importante falar disso agora?

Sim, a criminologia feminista permite um olhar para o fenômeno criminal que leve em consideração a forma como pensam, sentem e se expressam as mulheres. Um exemplo: havia um entendimento generalizado de que as mulheres gostavam de receber cantadas na rua. No entanto, quando, em 2013, pela primeira vez, se perguntou para as mulheres brasileiras sobre esse assunto, quase 90% das entrevistadas expressaram sentimentos negativos (medo, aversão, insegurança, nojo, etc). Isso mostra que muitas coisas são vistas somente a partir de um prisma, o masculino. Por conta disso, é importante permitir que as mulheres falem e, mais, que se escute o que elas têm a dizer, não só sobre questões que digam respeito aos seus direitos, mas como em relação às questões em geral.

Como a senhora acha que deveriam ser analisados e trabalhados os processos de criminalização e vitimização de mulheres?

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou uma recomendação (n. 79/20), no sentido de que magistrados e magistradas (inclusive no início da carreira) tenham capacitações com perspectiva de gênero. O mesmo se deu no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), com a Recomendação n. 89/21. As duas importantes iniciativas mostram como é necessário ter uma lente de gênero para entender as especificidades da violência contra a mulher. Quase 90% das mortes de mulheres são causadas por aqueles que foram ou são companheiros, maridos ou namorados das vítimas. E a maioria das mulheres está morrendo dentro do seu lar, o que mostra que a casa não é um lugar seguro para a mulher brasileira.

Como o nosso histórico patriarcal impacta a criminologia no que diz respeito às questões de gênero?

A criminologia tem como objeto de estudo o crime, o criminoso, a vítima e o controle social. Nesse último ponto, por exemplo, a criminologia tem trazido uma vasta contribuição ao mostrar a importância de encaminhamento do homem autor da agressão para centros de reeducação. É importante entender que a violência é cultura e, portanto, a sua erradicação vai exigir que se trabalhe com todos os envolvidos. Não adianta apenas dizer para as mulheres denunciem (o que é muito importante). Temos também que conscientizar os homens autores de agressão.

Qual é o lugar que a mulher ocupa nas práticas delituosas? As mulheres condenadas por tráfico de drogas no País jogam luz sobre esse lugar?
A taxa de carcerização de mulheres é bem inferior a dos homens e, quando presa, a maioria das prisões decorrem da condenação por tráfico de drogas. Não podemos deixar de levar em consideração que muitas mulheres presas estão grávidas ou deram à luz a pouco tempo ou estão amamentando seus filhos pequenos. Toda essa situação cria a necessidade de se elaborar normas que levem em consideração tais situações. É por conta disso que temos toda uma legislação especial que leva em consideração a mulher e todas as suas particularidades

Como a senhora vê a adoção de um programa de direito penal mínimo específico para as mulheres, levando em consideração os direitos fundamentais e a violência de gênero?

O direito penal mínimo é que está autorizado pela nossa Constituição Federal e é o que a maioria dos criminólogos adota. Por meio dele, entende-se a necessidade da punição, mas, também o quanto ela possui efeitos criminógenos. Por conta disso, o direito penal mínimo aconselha sempre a utilização, com muita parcimônia, do direito penal. Foi por meio do direito penal mínimo que foi desenvolvido, por exemplo, toda a teoria acerca da aplicabilidade do princípio da insignificância. Há que se ter em mente, no entanto, uma coisa: a Lei Maria da Penha decorre de compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário e da "condenação" que nosso País sofreu no caso da Maria da Penha Maia Fernandes, pelo Comitê Internamericano de Direitos Humanos. E, dentro deste contexto, importante esclarecer que a Lei Maria da Penha deve ser interpretada de acordo com os documentos internacionais que tratam de direitos das mulheres, bem como do direito internacional dos direitos humanos. A partir dessa percepção, a forma de interpretação dos seus dispositivos difere da forma que interpretamos as normas de direito penal e, portanto, não incide, aqui, o direito penal mínimo. Tanto é assim que o STJ possui uma súmula no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância para os casos de crimes praticados no contexto da Lei Maria da Penha.

Qual a relação que a senhora faz entre as bases de uma criminologia dita feminista e a atual realidade que vive a mulher vítima de violência doméstica e familiar ao buscar o efetivo acesso ao sistema de justiça disponível em nosso País?
Uma das importantes contribuições trazidas pela criminologia feminista foi ter dado primazia à vítima. Ela precisa ser escutada e com uma escuta qualificada, para que possamos entender, por exemplo, quais são as suas principais dificuldades em interromper uma relação violenta e abusiva. No momento em que a vítima é escutada, abrem-se várias perspectivas de atuação dos agentes do sistema de justiça no sentido de trazer, de forma mais qualificada e eficiente, uma resposta ao grave problema que a mulher vítima está vivenciando.

Nesses 15 anos que a Lei Maria da Penha está em vigor, houve significativos avanços que facilitem esse efetivo acesso?
A Lei traz em seus dispositivos instrumentos e recursos de extrema importância para prevenir, coibir e reprimir a violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, grande parte dos seus principais dispositivos ainda não saíram do papel, ou, se aplicados, tudo está acontecendo de forma muito tímida. Seria de enorme valia se a lei fosse cumprida. (Entrevista: Aline Leonardo - Foto: Divulgação - Centro de Comunicação social do TJGO)

 

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