Apenas 19 gramas – essa foi a quantidade de Césio 137 retirada de uma cápsula em 13 de setembro de 1987, em Goiânia. Apesar de parecer uma porção ínfima, a substância, altamente radioativa, uma vez liberada no ambiente, provocou um rastro de morte e sofrimento, que perduram 30 anos após o acidente, tido como o pior em área urbana da história mundial.

Setecentos quilos era o peso dos caixões de fibra de vidro, revestidos de chumbo, que guardaram os corpos das quatro vítimas, mortas após um mês do acidente. Foi necessário um guindaste para auxiliar o enterro e, para fechar a cova, em vez de terra, foi despejada massa de cimento. Símbolo da tragédia, a pequena Leide das Neves, de apenas seis anos, teve o sepultamento marcado por protestos populares, que temiam a irradiação e, consequente, contaminação do local.

Foram recolhidas 6 mil toneladas de rejeitos. Antes de virar lixo, eram roupas, fotografias, objetos pessoais, móveis e materiais das residências contaminadas. Algumas construções viraram terrenos vazios e concretados, outras, restaram, somente, a estrutura e vigas. “Tiraram o piso da minha casa, que era de sinteco. Retiraram tudo, rasparam as paredes. Não conseguimos pegar nem recuperar nada da minha família, não gosto nem de lembrar”, conta a vítima Míriam Francisca do Nascimento, 53 anos, que morava na Rua 15-A, Setor Aeroporto, a poucos metros de onde a cápsula foi aberta.

O peso do Césio 137 é sentido até hoje pelos sobreviventes. Há 650 pessoas que recebem pensão, subdivididas em grupos, do um ao quatro, de acordo com o grau de exposição à substância. Deste público, 130 recebem, cumulativamente, pensão estadual e federal. Para fazer jus a, pelo menos, um dos pagamentos, é necessário comprovar ter tido contato com áreas contaminadas. Cerca de 60% conseguiu o benefício por processos administrativos – o restante precisou ajuizar processo, a fim de comprovar existência de doença relacionada ao material radiológico.

Os pensionistas são civis e servidores públicos, como policiais e bombeiros, que atuaram no atendimento à comunidade, ocorrido a partir do dia 29 de setembro daquele ano – data em que a Vigilância Sanitária e a Secretaria Estadual de Saúde tiveram ciência do elemento radioativo à solta na cidade.

Santos Francisco de Almeida tinha, na época, 25 anos de idade e era soldado da cavalaria da Polícia Militar da capital. Ele se recorda, com detalhes, da ordem que recebeu para isolar as áreas detectadas, por onde o pó azul se espalhou – no Setor Aeroporto e na Rua 57, no Centro. “No dia 29 de setembro, chegou o ofício número 001, do chefe da Defesa Civil, pedindo apoio, por causa de um suposto vazamento de gás. Isolamos a área, colocamos uma corda, desviamos o trânsito e impedimos a passagem de pedestres desavisados” - tudo feito sem vestimenta ou proteção adequadas.

“Eu e meus colegas estávamos passando mal, com vômito e diarreias, mas achamos que era por causa do calor forte que faz nessa época do ano. Ninguém sabia do que se tratava ou da gravidade da situação. Quando vimos os técnicos da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) chegarem, com aquelas roupas de astronauta, soubemos que era um acidente radiológico”, relembra o militar.

Hoje aposentado, Santos enumera seus problemas de saúde, comprometimento nos ossos e na arcada dentária, hipertensão, transtorno de ansiedade e insônia. Os remédios custam entre R$ 50 e R$ 300. “Eu era jovem e saudável, antes tinha servido no Exército, passei pela Junta Médica antes de ingressar na PM. Minhas doenças começaram a aparecer depois do acidente”. Um dos maiores comprometimentos foi a infertilidade que o acometeu por mais de uma década, só conseguindo gerar sua filha após esse período. A jovem, hoje com 20 anos, passou por cirurgias de hérnia e sofreu com deficit de crescimento durante a infância.

 “Participei de um trabalho acadêmico, no qual fiz exame de DNA que mostrou que sofri mutação genética e isso afetou minha capacidade de ter filhos”, relata a respeito da pesquisa do Núcleo de Estudos Genéticos Replicon, da Universidade Católica de Goiás (UCG), que acompanhou homens expostos à irradiação do Césio 137, concluindo que houve alterações nas sequências associadas à produção de espermatozóides.

Para amenizar o sofrimento, como o militar explica, ele ajuizou três ações na Justiça: para ter a pensão estadual, prevista na Lei nº 14.226/2002, ter direito aos retroativos e isenção do Imposto de Renda, esta última, na Justiça Federal. “Isso deveria ser natural – receber o que é nosso de direito. O Governo deveria reconhecer todos afetados como vítimas, sem distinção entre grupos, sem precisar entrar na Justiça”.

Processos, pensões e indenizações

Segundo o sistema de Atos judiciais do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), há 361 registros de despachos e sentenças contendo os termos “césio 137” na instância singular. No segundo grau, há 238, entre acórdãos e relatórios. Apesar de o sistema não diferenciar a natureza das ações para fins de pesquisa, são pedidos relacionados a pensão, remédios e inclusão no Instituto de Assistência aos Servidores Públicos do Estado de Goiás (Ipasgo) – caso como de Míriam Francisca.

Vizinha da casa de Ivo Alves Ferreira e Lourdes Ferreira das Neves – pais da menina Leide –, a moradora do Setor Aeroporto lembra do sufoco vivido em 1987. “As pessoas nos chamavam de ‘irradiados’. Engravidei e me indicaram abortar, pois poderia nascer um ‘monstrinho’, como me disseram. Foi muito triste, mas segui com a gravidez e minha filha nasceu um ano depois do acidente”, relata a mulher que já tinha um filho de quatro anos.

Quando foi desalojada, precisou ir com a família morar na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), local onde pessoas na mesma situação foram alocadas. Por meio de ação judicial, Míriam conseguiu estender a cobertura do plano de saúde aos filhos. “Minha família sofre com depressão. Minha sogra faleceu de câncer, que se espalhou por todo o corpo. Eu preciso de remédio para lúpus e cardiopatia grave. Todo ano é a mesma coisa, quando o Césio faz aniversário, nos procuram para fazer reportagens, mas nossa situação não muda. Precisamos de ajuda, mas não recebemos, fomos esquecidos”, explica sobre a necessidade de procurar a Justiça para fazer valer suas garantias.

Servidora pública, Aliete Correia Mendes, 50 anos, trabalhava na Vigilância Sanitária em 1987. Era copeira e trabalhou no mesmo cômodo em que estava a sacola plástica que continha partículas de Césio 137. A substância foi levada ao órgão por Maria Gabriela Ferreira, mulher de Devair Alves Ferreira, dono do ferro velho no qual a cápsula fora aberta. Quando submetida ao aparelho para medir radiação, Aliete estava com 50 rads – unidade de medida para radiação absorvida, indicativo para alta dosagem, colocando-a no grupo 1 de vítimas.

“Cheguei para trabalhar no dia seguinte e o local estava interditado. Fiquei com medo, pois estava grávida de dois meses. Os técnicos da CNEN me indicaram abortar e me deram uma semana para decidir, antes de entrar no terceiro mês, pois avisaram que meu bebê poderia nascer cego ou sem membros. Decidi manter e minha filha nasceu saudável, mas foram nove meses de sofrimento e desespero”, relembra.

Ao longo desses 30 anos, a servidora passou por sete cirurgias para retirada de tumores no útero. Hoje, faz uso contínuo de corticoides e sofre de artrose e artrite reumática, precisando, frequentemente, passar por infiltração. Continua na ativa, no setor administrativo de um dos hospitais públicos de Goiânia, e recebe pensão estadual destinada aos radio-acidentados – com valor em torno de R$ 700 – sem reajuste há alguns anos. “É uma vergonha recebermos menos de um salário mínimo. Vivemos hoje um descaso do Governo. Se fosse em outro lugar, como Estados Unidos, aposto que não seria assim, pois foi um acidente de proporção mundial”, conta Aliete, sobre a dificuldade de arcar com os remédios.

Monitoramento

Em qualquer momento da vida, caso surja alguma moléstia crônica, quem teve contato com o Césio 137 – direto ou indireto – pode pleitear, administrativamente, o pensionamento, conforme dispõe a Lei 14.226/2002. O pedido pode ser feito administrativamente ou por vias judiciais, isso significa que o número de 599 ações, contabilizadas até hoje, é dinâmico.

Segundo o diretor-geral do Centro de Assistência aos Radio-Acidentados (CARA) – unidade ligada à Secretaria Estadual da Saúde –, André Luiz de Souza, a normativa que prevê o benefício é importante, mas tem exageros. “Qualquer pessoa que manifeste uma doença crônica pode pleitear a pensão vitalícia. É preciso entender o razoável: hoje, na sociedade moderna, a maior parte da população tem sedentarismo e hábitos ruins de alimentação. Será que a doença foi causada pelo Césio 137?” indaga.

A exposição excessiva ao pó azul provocou, na época, lesões na pele de quem o tocou, totalizando 26 pacientes marcados fisicamente pelo Césio 137. As cicatrizes hoje estão fechadas, como é o caso de Luíza Odet Mota dos Santos, de 58 anos. Ela era vizinha de Ivo Ferreira, pai da menina Leide.

“Lembro quando a Leide falou ‘olha a pedrinha alumiante que o papai trouxe’ e apagou a luz para me mostrar o brilho. Ivo, de brincadeira, passou um papel com pó de césio no meu pescoço, ‘para ficar bonita’. Por causa disso, tive uma lesão aberta no pescoço e no seio, por onde caiu o pó. Abriram feridas nas mãos e nos dedos. Tenho as manchas até hoje, quem não sabe da história acha que é queimadura ou vitiligo”, relata. Por sorte, Luíza não teve câncer, mas apresenta artrose, artrite, nódulos nas juntas.

O diretor-geral do CARA explica, com base nos relatórios emitidos pelo centro, que as doenças observadas no público atendido são diabetes, hipertensão, cardiopatias, infecções das vias aéreas superiores, osteoporose, alergias, gastrites – com proporções dentro da normalidade brasileira.

“O contato com radiação intensa poderia gerar incidência de leucemia, o que felizmente não foi registrado em Goiânia”, explica o diretor-geral, com base na incidência dos casos de câncer na capital em comparação os parâmetros externos.

“Nos últimos 30 anos, faleceram 95 pacientes, sendo 14 considerados vítimas ou filhos de vítimas e 81 trabalhadores do Grupo III. Quatro pessoas foram vítimas diretas do césio 137, mas os 91 óbitos tiveram causa mortis sem nexo de causalidade com o acidente radioativo”, relata André Luiz. (Texto: Lilian Cury/ Fotos: Cecília Araújo de Oliveira - Centro de Comunicação Social do TJGO)

 

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