“Faltará tinta no dia que o céu for livre, para todos serem o que são, cobertos pelo sol, sem nenhum tipo de opressão”. O poema Colorir, da escritora transexual Virgínia Guitzel, reflete um pouco da história da cuidadora de deficientes físicos e transexual Vanessa Ferraz, de 29 anos, que, assim como tantas pessoas nessa condição, sofrem diversos preconceitos e, muitas vezes, tem negados direitos inerentes a qualquer cidadão. No entanto, atenta aos importantes princípios de natureza social como inclusão, dignidade e isonomia, a Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás, de forma inédita no País, por meio do Programa Pai Presente, em uma demonstração de humanidade e sensibilidade, assegurou à Vanessa um dos direitos mais básicos de um ser humano: o de ter o nome do pai nos documentos oficiais. A audiência, que aconteceu pela primeira vez no Brasil nesta seara, foi realizada, de forma virtual, em junho deste ano pela equipe do Pai Presente.
Com uma história marcada por superação de inúmeros preconceitos e obstáculos, Vanessa Ferraz, que reside atualmente na cidade de Marabá, no Estado do Pará, teve que enfrentar o ódio da própria mãe ainda criança, que nunca aceitou sua condição. Contudo, contou a vida inteira com o apoio irrestrito do pai, de quem precisou se manter afastada por muitos anos em decorrência de motivos pessoais e contra a vontade de ambos. O sonho dos dois sempre foi o reconhecimento da paternidade de forma oficial, mas os anos se passaram, Vanessa morou um tempo em Goiânia com a avó paterna, mas acabou retornando ao Pará. No entanto, o reencontro emocionado de pai e filha culminou no tão almejado reconhecimento paterno.
“Ser trans é transcender a si mesmo, é encarar o espelho com amor e o mundo com coragem. Ser trans é entender que não é errado ser diferente, e que ser diferente significa que você é forte o suficiente para não ter que ser igual. É conviver com o medo, sair de casa sem saber se vai voltar. Sou trans com ousadia, com orgulho, de não deixar que a transfobia que me assola lá fora sejam grades de uma prisão. Sempre me vi diferente desde criança e posso dizer que sinto orgulho de ser quem sou. Meu pai é tudo na minha vida, meu sol, minha luz. Sempre me acolheu, me deu colo. E agora, caminhamos, de mãos dadas, com a concretização desse sonho que o Pai Presente nos proporcionou: a inclusão do nome dele nos meus documentos oficiais. Nossa felicidade é indescritível”, comemorou.
Oportunidade ímpar
Afastado da filha por tanto tempo, o técnico em TI, A.S.G, de 45 anos, também enaltece o Pai Presente e a oportunidade ímpar de reconhecer finalmente a filha tão querida, por quem sempre nutriu amor incondicional independente da sexualidade.
“Tão importante quanto, ou mais importante até, que validar leis que assegurem a pessoas como a minha filha acesso a serviços básicos como saúde, segurança e emprego, é garantir que a sociedade se desapegue de preconceitos relativos a noções de gênero advindos de uma visão ultrapassada, passando a acolher essas pessoas da forma que elas merecem e necessitam. Isso foi o que encontramos no Pai Presente, pois fomos totalmente acolhidos com atenção e carinho e somos gratos para o resto da vida. Minha filha sempre foi diferente desde criança, pois gostava das bonecas ao invés dos carrinhos e jamais a amei menos por isso. Pelo contrário, hoje amo ainda mais, e agora, somos, oficialmente, pai e filha, também na nossa documentação”, evidenciou.
Humanização
Dotado de uma visão humanizada e arrojada, o corregedor-geral da Justiça do Estado de Goiás, desembargador Nicomedes Domingos Borges, ressaltou a importância de acolher a pessoa transexual, reconhecendo a sua individualidade e respaldando os valores democráticos de promoção dos direitos humanos. A seu ver, o Programa Pai Presente propicia esse cuidado e proteção e se torna exemplo para outros Tribunais no resgate à dignidade humana ao realizar pela reconhecer pela primeira vez o reconhecimento de paternidade de um transexual.
“Precisamos nos atentar para a heterogeneidade que marca a sociedade contemporânea, em seus diversos aspectos, contribuindo, assim, para a harmonia e o desenvolvimento social. Ao promover o reconhecimento de uma pessoa transexual com ineditismo no País, o Programa Pai Presente ultrapassa a fronteira do preconceito demonstrando, de forma inequívoca, que qualquer cidadão deve ter os seus direitos assegurados, especialmente o de ter o nome do pai em seus documentos, seja ele filho maior, menor, homossexual ou transexual. A Corregedoria-Geral da Justiça tem uma importante missão social no contexto atual e se preocupa com a dignidade da pessoa humana, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças”, acentuou.
Em consonância com o corregedor-geral, os juízes Gustavo Assis Garcia, auxiliar da CGJGO e coordenador geral do Pai Presente no Estado, e Eduardo Perez Oliveira, coordenador executivo do programa, que preside as audiências e acompanha os trabalhos desde a sua implementação, manifestaram grande satisfação com a realização desta audiência diferenciada e ressaltaram a importância do processo evolutivo de humanização pelo qual passa o Poder Judiciário, tendo o Pai Presente como uma ferramenta fundamental para assegurar o direito inerente ao reconhecimento de paternidade de qualquer pessoa.
“O Programa Pai Presente, de forma pioneira, mostra que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana aplica-se a todos os indivíduos indistintamente, independentemente da cor, da orientação sexual ou religião, garantindo de forma isonômica a possibilidade do reconhecimento da paternidade àqueles que tenham sido registrados apenas com o nome da genitora”, ressaltou Gustavo Assis.
Obrigatoriedade e requisitos essenciais
Em algumas situações excepcionais, o exame de DNA é obrigatório para que ocorra o reconhecimento paterno através do Pai Presente, dentre eles, quando a mãe for falecida ou ausente (caso somente de filhos menores de 18 anos), o pai for estrangeiro ou menor de 18 anos, e se o pai for muito idoso ou apresentar doença grave.
São requisitos essenciais para atendimento pelo Programa Pai Presente: a pessoa ter sido registrada somente no nome da mãe, o suposto pai estar vivo, ter informações completas e atualizadas do suposto pai (nome, endereço e telefone), a apresentação dos documentos pessoais, a vontade expressa do filho de ser reconhecido pelo pai biológico (quando for maior de 18 anos), e o reconhecimento espontâneo e voluntário do próprio pai, sendo oferecido pelo programa testes de DNA em casos de dúvida da paternidade.
Em determinadas circunstâncias, as partes não podem ser atendidas pelo Pai Presente como em casos que abarcam investigação de paternidade post mortem, negatória de paternidade, retificação de registro para exclusão de paternidade, substituição de paternidade ou cumulação, e paternidade socioafetiva. Dentro dessas condições específicas, essas demandas devem ser resolvidas por meio de uma ação judicial.
Consolidação
Desde que foi instituído em decorrência da pandemia da Covid-19, o Pai Presente Total, iniciativa pioneira no Estado em que a CGJGO, por meio do Provimento nº 54/2021, consolidou as audiências virtuais concentradas de reconhecimento de paternidade, via plataforma Zoom Meetings, englobando todas as comarcas de Goiás, tem alcançado pessoas de todos os lugares do mundo. O projeto é desenvolvido dentro do Programa Pai Presente, executado pela CGJGO desde 2012.
Desde o início de 2022, os atendimentos do programa têm ocorrido de forma contínua, no âmbito on-line (WhatsApp e e-mail) e presencial (em casos excepcionais), bem como as audiências para reconhecimentos de paternidade e exames de DNA. Embora sejam realizadas uma vez por mês, dependendo da demanda e se houver solicitação das partes, as audiências podem ocorrer outras vezes dentro desses 30 dias.
Regulamentação
Instituído há 10 anos em Goiás, o Programa Pai Presente já está instalado em 100% das comarcas goianas pelos provimentos números 12, 16, 19 e 26, de 6 de agosto de 2010, 17 de fevereiro, 29 de agosto e 12 de dezembro de 2012, respectivamente, da Corregedoria Nacional de Justiça, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. No Estado, o Pai Presente foi regulamentado por meio do Provimento nº 08, de 30 de dezembro de 2011, da CGJGO.
O Pai Presente realiza ações, campanhas e mutirões com o objetivo de garantir um dos direitos básicos do cidadão: o de ter o nome do pai na certidão de nascimento. O procedimento pode ser feito por iniciativa da mãe, indicando o suposto pai, ou pelo próprio comparecimento dele de forma espontânea.
Os interessados no Pai Presente podem entrar em contato pelos telefones (62) 3216-2442 e (62) 9 9145-2237 ou pelo e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. *A divulgação do nome da parte nesta matéria foi devidamente autorizada pela mesma e o da outra parte envolvida neste caso foi preservado a pedido dela. (Texto: Myrellle Motta - Diretora de Comunicação Social da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás/ Edição de imagem: Acaray Martins e Barbara Carvalho- Centro de Comunicação Social do TJGO)