Após sete anos de luta para receber o salário maternidade relativo ao segundo filho e com a renda mensal de R$ 30 para o sustento da família, a jovem integrante da comunidade Kalunga, Maria Helena Serafim Rodrigues, de 27 anos, que enfrenta uma quarta gravidez de grande risco, viu seu sonho se realizar ao obter na tarde desta segunda-feira (29) o salário maternidade. O benefício foi concedido pelo juiz Thiago Cruvinel Santos durante o Programa Acelerar – Núcleo Previdenciário, do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), que teve início nesta segunda-feira (29) na comarca de Campos Belos e se estende até a terça-feira (30). A previsão é de que sejam julgados 110 processos no âmbito previdenciário.

Com um sorriso nos lábios e tomada pela emoção, Maria Helena, grávida de seis meses de uma menina, relata que, pela primeira vez, é tratada com humildade e dignidade, ao contrário do que ocorreu quando tentou procurar o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ela conta que, para manter a casa, recebe o benefício do Renda Cidadã de R$ 80, mas que só com o deslocamento da comunidade Kalunga até Campos Belos para acompanhamento médico, em razão do deslocamento da placenta, gasta R$ 50. O restante, cerca de R$ 30, ela guarda para o básico das crianças e só come o que planta na região. “Agora não me sinto inferior, fui recebida como um ser humano de verdade, de forma digna. Pode parecer pouco para muita gente, mas R$ 2 mil, valor do salário maternidade corrigido que devo receber, para nós é simplesmente uma fortuna. Sobreviver com R$ 30 e dois filhos não é fácil, a vida no quilombo é dura”, comoveu-se.

A seu ver, o fato de o juiz ter um bom conhecimento da situação dos kalungas e uma postura mais humanizada contribuíram para que o caso fosse solucionado com maior rapidez. “Quem conhece a nossa comunidade sabe que enfrentamos dificuldades diversas, como acesso difícil, falta de água e alimentação, entre outros. Estou muito feliz com esse direito alcançado tão rapidamente e com a maneira com que o juiz analisou meu caso. Só posso agradecer a ele e a Deus por tudo”, ressaltou. Ao conceder à gestante o direito ao salário maternidade, o magistrado condenou o INSS ao pagamento de uma só vez de todos os benefícios pleiteados, equivalentes a quatro salários mínimos, correspondentes aos 28 dias antes do parto, vigentes à época do vencimento, monetariamente corrigidos nos termos da Lei nº 6.899/88 e das Súmulas nºs 43 e 148 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Ainda determinou que fossem acrescidos juros de mora no valor de 1% a contar do período da citação. “A comunidade Kalunga é mais fechada, tem uma cultura própria. Neste caso, o salário maternidade será a única fonte de renda da mãe, que auxiliará no sustento da criança e dos outros filhos, pois ela perde a capacidade para o trabalho. Por isso, o mutirão previdenciário é tão importante, pois atende no tempo certo, com celeridade. Hoje, no mesmo dia, realizamos a audiência de instrução e julgamento e proferimos a sentença deste caso ímpar, propiciando a essa mãe o direito de ter uma gravidez saudável, sem ter de se submeter novamente ao serviço na roça para manter seus filhos, o que colocaria seu bebê em risco”, observou.

De acordo com a Diretoria do Foro local, 324 processos que tramitam na comarca de Campos Belos (11 referentes ao Processo Judicial Digital - Projudi) – de um total de aproximadamente 6 mil – são relativos a ações previdenciárias. Dessa forma, o mutirão atinge e beneficia a maior parte da população local e carente, uma vez que abrange também o distrito judiciário de Monte Alegre de Goiás, onde está concentrada grande parte da comunidade Kalunga. Cerca de 70 audiências relacionadas à aposentadoria rural por idade e por invalidez, urbana por idade, auxílio-doença, salário-maternidade e Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) foram realizadas pelos juízes Rosemberg Vilela da Fonseca, que responde atualmente por Campos Belos; Thiago Cruvinel Santos, Hugo Gutemberg Patiño de Oliveira e Everton Pereira Santos.

Sobre os kalungas

Kalunga é o nome atribuído aos descendentes de escravos fugidos e libertos das minas de ouro do Brasil Central que formaram comunidades autossuficientes e que viveram mais de 200 anos isolados em regiões remotas próximas à Chapada dos Veadeiros, no atual Estado de Goiás, no Brasil. São três as comunidades kalungas: nos municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás. A mais populosa comunidade está situada no município de Cavalcante, com pouco mais de 2 mil pessoas, distribuídas nas localidades do Engenho 2, Prata, Vãos do Moleque e das Almas. A última é a mais recente a se integrar no seio do município (cerca de 30 anos).

Atualmente, alguns estudos têm indicado a presença de kalungas também em regiões do Estado do Tocantins, nos arredores de Natividade e regiões isoladas do Jalapão. Durante todo este período, houve miscigenação com índios, posseiros e fazendeiros brancos. Houve, também, forte influência cultural de padres católicos, dando lugar a uma cultura hibridizada, característica que se manifesta na alimentação e no forte sincretismo religioso da mistura do catolicismo e de ritos africanos. (Texto: Myrelle Motta - Fotos: Wagner Soares - Centro de Comunicação Social)