Sob a ótica da valorização da dignidade humana, a equipe do Programa Acelerar – Núcleo Previdenciário do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), fará um atendimento noturno especial e inédito, na próxima quinta-feira (20), com a comunidade de Araras – povoado pertencente ao município de Faina, no Noroeste do Estado, com 8 mil habitantes –, que tem o maior índice de portadores de xeroderma pigmentoso do mundo (fenômeno genético, raro e sem cura, transmitido de pai para filho, que deixa a pessoa hipersensível à luz, causa câncer, mutila e mata). 

Serão realizadas, a partir das 18h30, no próprio povoado, cerca de 30 audiências para a concessão de benefícios previdenciários. Participarão do esforço concentrado seis juízes, um promotor e um perito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Isolados de tudo, sem dinheiro, assistência médica, aposentadoria ou instrução, a maioria dos moradores sofre no dia a dia com a exposição ao sol, pois o meio de subsistência é a agricultura e a pecuária. Os portadores da doença são submetidos a procedimentos dolorosos para retirada de tumores cancerígenas e usam próteses. Grande parte da população de Araras, cuja temperatura varia entre 20 e 35 graus, já morreu em decorrência do alastramento rápido do câncer. Para manter o mínimo de proteção contra os efeitos da luz solar, eles necessitam do uso de 7 a 8 tubos de protetor solar francês (eryfotona/fator 100) por mês, que custa em média 160 reais, ou seja, mais de mil reais mensais.

A explicação é dada por Gleice Machado, presidente da Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (Abraxp), que convive de perto com a doença. Casada com um primo há 14 anos que morreu no ano passado em razão da doença, ela é mãe de um menino, hoje com 12 anos, que também apresenta a enfermidade. “Estamos muito distantes de ter uma qualidade de vida no mínimo razoável para lidar com esse mal. Não temos políticas públicas efetivas que nos ajudem a enfrentar o problema. O protetor solar é só um dos cuidados que devemos tomar. Qualquer feixe de luz causa danos irreparáveis. Dentro de casa, por exemplo, o correto seria usar lâmpadas de led, proteção de tela nos computadores, televisores e janelas, além do ar-condicionado. Mas vivemos, aqui, na precariedade. Nosso local de morar é simples, muito quente, com pouco conforto ou espaço ”, desabafa.

Vítima de muitos preconceitos, conforme explica Gleice, a maioria dos moradores tem dificuldade de aceitar a doença e se tornou muito desconfiada. Como o povoado é distante de Goiânia (cerca de 240 quilômetros), fica a 40 quilômetros de Faina, a estrada é esburacada e de terra, com pontes caídas ao longo do caminho, e, portanto, o acesso se torna outra grande dificuldade para os doentes. “Temos um transporte cedido pela prefeitura municipal, no entanto, a viagem é longa e ficamos expostos ao calor dentro da van, o que aumenta o risco de desenvolvimento de câncer. Durante o dia é necessário usar roupas especiais, chapéu e óculos de sol de grau, com abas mais largas. Sem falar nos medicamentos para tratar o câncer e no transporte adequado para a realização de consultas e exames na capital. Infelizmente, não temos esses recursos e precisamos que as autoridades olhem pra nós, nos enxerguem literalmente”, conclama.

Autora do livro Nas Asas da Esperança, a história de dor e resistência da comunidade de Araras, Gleice conta que a obra traz informações primordiais sobre a doença, depoimentos de enfermos e familiares, bem como o andamento de estudos científicos que tentam desvendar o xeroderma pigmentoso. Os exemplares são vendidos a 20 reais e estão disponíveis na Associação dos Magistrados de Goiás (Asmego), que aderiu à campanha para ajudar os doentes. “Estamos tentando mobilizar o maior número de pessoas e autoridades possíveis para alertar sobre a gravidade da situação em que vivemos”, enfatiza.

Já marcado pelas cicatrizes, o filho de Gleice, o pequeno Alisson, se submeteu recentemente ao oitavo procedimento cirúrgico para extração de um tumor cancerígeno. O garoto estuda pela manhã e a escola não tem a estrutura necessária para atender crianças com a doença, uma vez que sua construção é antiga e singela. “Ele começou a apresentar os sintomas com 8 anos e desde então luto incessantemente para que meu menino tenha uma vida menos dura do que a do pai. Como explicar a uma criança que ela não pode jogar futebol com os amigos ou que não tem como, ao menos, tomar um sorvete na esquina feito todo mundo. Isso é a coisa mais triste e dolorosa do mundo para uma mãe”, comenta, entristecida.

Sensibilidade e ação

Sensibilizada com a situação dos moradores de Araras, a juíza Alessandra Gontijo Amaral (foto), diretora do Foro da comarca de Goiás, iniciou em março deste ano uma campanha em prol dos portadores e sugeriu a realização do mutirão previdenciário no povoado. “São pessoas muito carentes, que necessitam de atenção dos poderes constituídos. Quis mostrar a eles que o Judiciário está de portas abertas e que temos a preocupação de ajudá-los de verdade”, comenta a magistrada. Alessandra já acionou instituições como a Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego), o Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (TRT-18) e INSS em prol de recursos que atendam às necessidades do povo de Araras.

Ela conta que vários magistrados, entre juízes e desembargadores, já fizeram doações para a Abraxp. “Pretendemos com a campanha da associação arrecadar roupas com capacidade para filtrar a radiação ultravioleta, bem como bonés, chapéus, óculos escuros e protetores solares. Essa iniciativa também destina-se a angariar fundos para adaptação das casas dos moradores da comunidade, com janelas menores, cortinas especiais e lâmpadas de baixa potência”, relatou.

Mal que atinge geração após geração

Pesquisa recente efetuada pela Universidade de São Paulo (USP) detectou na comunidade, após uma segunda coleta de sangue realizada recentemente, outros 169 portadores de XP. Anteriormente, numa primeira avaliação, em meados de 2010, foram comprovados 21 doentes, dos quais 2 parentes residiam nos Estados Unidos. Nas últimas cinco décadas, 20 pessoas naturais do vilarejo morreram corroídas pelo câncer. Mais de 60 perderam a vida com os mesmo sintomas, mas não receberam diagnóstico médico.

Por não haver registro de tamanha incidência dessa enfermidade em nenhuma outra parte do mundo, os doentes de Araras são objeto de estudo do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), maior do País nesse segmento. Integra a equipe o maior conhecedor de xeroderma pigmentoso no Brasil, o biólogo Carlos Frederico Martins Menck, que estuda a doença desde 1976 e esteve no povoado para conversar e examinar pessoalmente os pacientes.

Cerca de 200 famílias residem em Araras. A maioria é formada por casamento entre parentes, principalmente primos. Foi justamente essa cultura que culminou na perpetuação e proliferação da doença na comunidade, já que é comum entre nascidos da união entre pessoas da mesma família. A estimativa de casos no mundo é de um em cada grupo de 200 mil pessoas, contudo, em Araras, mais de 20 histórias foram registradas em 2010 num só povoado, a maior média do mundo. Somente na Guatemala, País que fica na América Central, uma comunidade indígena apresenta índices semelhantes. No entanto, os habitantes da tribo não vivem mais que 10 anos. Já os de Araras, conseguem chegar à fase adulta, mesmo com todas as sequelas provocadas pelo câncer ao longo do tempo.

Sobre a doença

O xeroderma pigmentoso é uma doença hereditária caracterizada pela deficiência na capacidade de reverter (ou consertar) determinados danos no DNA (material genético), em especial aqueles provocados pela luz ultravioleta, presente na radiação solar. Por ser uma doença recessiva, o xeroderma é comum entre nascidos de casamentos consanguíneos - em que o risco de duas pessoas terem o mesmo erro genético é maior. A doença afeta ambos os sexos e além do risco de câncer de pele ser aumentando em mil vezes, a incidência de cânceres internos, em 15 vezes. As lesões cutâneas estão presentes nos primeiros anos de vida, evoluindo de forma lenta e progressiva, e são diretamente relacionadas à exposição solar. Aos 18 meses, metade dos indivíduos afetados apresenta algum sinal algumas lesões nas áreas expostas ao sol; aos 4 anos cerca de 75%, e aos 15, 95%.

Os indivíduos podem exibir ainda anormalidades neurológicas progressivas (observadas em cerca de 20% dos casos) e alterações nos olhos. Aproximadamente 80% deles apresentam alterações oftalmológicas que incluem fotofobia, conjuntivite, opacidade da córnea e desenvolvimento de tumores oculares. Cerca de 20% dos pacientes têm alterações neurológicas como microcefalia, ataxia (perda de coordenação dos movimentos musculares voluntários), surdez neurossensorial e retardo mental. Há também aumento do risco de outros tumores cerebrais, gástricos, pulmonares e leucemia.

Balanço geral do Acelerar Previdenciário

O Acelerar Previdenciário começou em 11 de abril de 2013 na comarca de Padre Bernardo e está sob a coordenação do juiz Reinaldo de Oliveira Dutra. O objetivo é dar celeridade às ações previdenciárias em tramitação e reduzir o acervo existente. São beneficiadas as pessoas mais carentes com idade avançada ou graves problemas de saúde (deficiências, etc). Desde o início até o momento atual (2013 a 2015), já foram proferidas mais de 20 mil sentenças, concedidos quase 14 mil benefícios, alcançando, assim, o montante de R$ 119.311.073,07 pagos em auxílios atrasados. Somente de fevereiro a julho deste ano, foram realizadas 5.121 audiências e beneficiadas 32 comarcas. A estimativa é que até o final do ano, o programa deve registrar 10 mil audiências.

O Acelerar Previdenciário inicia a semana em Uruana, cuja previsão é de 69 audiências, e segue para Itapuranga – com estimativa de 219 audiências, das quais 110 deverão ser efetuadas na terça-feira (18) e 109 na quarta-feira (19) –; Cidade de Goiás (quinta e sexta-feiras - 20 e 21), que comportará 200 audiências, e, na noite de quinta-feira (21), atenderá o Povoado de Araras, com a análise de 30 processos. Atuarão na edição especial do Acelerar Previdenciário de Araras os juízes Luciana Nascimento Silva, de Turvânia; Luciano Borges da Silva, de Santa Helena de Goiás; Marli de Fátima Naves, de Vianópolis; Reinaldo de Oliveira Dutra, de Acreúna; Rodrigo de Melo Brustolin, de Rio Verde; e Gabriela Maria de Oliveira Franco, de Caiapônia. Também participarão o promotor Edvar da Costa Muniz, de Goiás; e um perito no INSS. (Texto: Myrelle Motta – Centro de Comunicação Social do TJGO)